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Um romancista no meio do povo | Dalcídio Jurandir

Foto do escritor: {voz da literatura}{voz da literatura}

Dalcídio Jurandir (1909-1979)
Dalcídio Jurandir (1909-1979)

{} "Um romancista no meio do povo" é o primeiro artigo de Dalcídio Jurandir (1909-1979) para a revista Leitura, publicado no número inaugural desse periódico, em dezembro de 1942. Um ano antes, Dalcídio havia lançado seu romance de estreia Chove nos campos de Cachoeira, com o qual ganhou o concurso da revista literária Dom Casmurro, que contava com jurados como Jorge Amado e Oswald de Andrade. {}



 

UM ROMANCISTA NO MEIO DO POVO

Dalcídio Jurandir


José Lins do Rego é, talvez, o mais popular dos nossos romancistas. O "Ciclo da Cana de Açúcar" é uma obra que há de ficar pelo seu conteúdo social, pela sua densidade humana, porque fixa uma sociedade patriarcal cuja influência no Brasil perdura até hoje com tão vivas sobrevivências. Seria Interessante saber se o romancista de "Bangue" é, realmente, um escritor de massa, um nome íntimo do povo, um autor para cem mil leitores, como se podia esperar pela tamanha amplitude de seus romances escritos em rude mas verdadeira língua do povo, com um caráter tão profundamente brasileiro.


Já há tempos dizia o autor de "Usina", a um jornal literário, que teríamos de intensificar a educação popular se quisessem os escritores do Brasil ser conhecidos pelo povo, ter cem mil leitores, com melhores possibilidades de viverem da profissão literária. Acontece que, além do problema do analfabetismo, há também o da falta de capacidade aquisitiva por parte do público que mal pode comprar a carne, o pão, pagar a casa e a roupa e o cinema, sabendo-se que este é, afinal, o divertimento mais barato. Entretanto, o povo gosta de ler, quer livros, tem uma enorme curiosidade de saber, olha as livrarias com o maior interesse. Não quer somente o livro de S. Cipriano, os intermináveis fascículos da Irmã Branca, as brochuras de Delly passadas de mão em mão, os livros de modinhas; os almanaques, os ABC. Um livro de ciência custa pelo menos uns quinze mil réis, um romance de José Lins do Rego apresenta o preço pouco módico de doze mil réis o volume. Resultado: as livrarias continuam distantes do povo exibindo os livros caros e inatingíveis como objetos de luxo.


Andamos pela cidade a fazer perguntas aos chauffeurs, motorneiros, condutores de trens, domésticas, caixeiros, garçons, homens do povo, a respeito do autor de "O Moleque Ricardo".

 

"Pureza" e uma costureira

A moça trazia um embrulho, um figurino e lia um livro: "Pureza" de José Lins do Rego. Quando lhe perguntei se conhecia os romances do “Ciclo da Cana de Açúcar", encarou-me quase assustada. Mas respondeu, com frieza:

— Não.

Insisti e justifiquei a minha curiosidade em saber se gostava da leitura de "Pureza" e se o romance era ou não melhor que os de Delly ou Ardel. A moça sorriu e me disse que não tinha tempo para ler. A sua vida era no ateliê de costuras.

— O tempo que tenho é no bonde e no trem. Leio, às pressas, e à toa. Este livro veio às minhas mãos por acaso. Sou costureira e a minha leitura se limita aos figurinos. Interessou-me ler este romance por causa do filme que vi há tempos. Um filme brasileiro. Estou gostando da leitura. Nem sei se posso ler até o fim. Cadê tempo? Esse José Lins do Rego é daqui ou mora na Baía?

 

Conversa com um Chauffeur

Um chauffeur na Praça Quinze. Conversamos como bons amigos. O assunto era a falta da gasolina. Depois falamos em jornais e mais tarde em livros.

— Sabe quem é José Lins do Rego?

— Com esse nome, isto é, José do Rego. Quem é?

— É um escritor. Um romancista brasileiro. Você nunca lê romances?

— Já li dois romances na minha vida. "O Pão dos Pobres" e "Mártir do Gólgota".

— Sabe o nome do autor?

— Bem, não sei lhe dizer. Uma coisa que não me preocupa muito saber é o nome dos autores. Mas desse José Lins do Rego não tenho nenhuma lembrança, a não ser de um açougueiro que conheci na Penha.

 

Um Padeiro que leu a História de Carlos Magno

— Gostaria de ler muitos livros, disse o padeiro de minha rua, mas não há verba. Não me lembro de ter lido história tão bonita como a história de Carlos Magno. O livro não era meu. Hoje me limito a ler os jornais.

— Nunca ouviu falar em José Lins do Rego?

— Esse nome... esse nome não me é estranho. Ah, já sei, li esse nome na seção de esportes. Foi um artigo do cronista esportivo Mário Filho. Esse José Lins do Rego escreve o quê?

 

Encontro com o Quitandeiro que compra Jornais aos Quilos

— Você nas horas vagas lê algum  livro, meu amigo? perguntei no quitandeiro vizinho que acabava de comprar dez quilos de jornais para embrulho.

— Leio o X9 e oiço o rádio em minha casa.

— Já ouviu falar em José Lins do Rego?

— É um novo cantor de rádio?

— É um romancista muito conhecido. Deve conhecer.

— Já li um romance bom o "Iracema" de José de Alencar. Aquele sim. Esse José Lins do Rego nunca ouvi falar na minha vida.

 

Um Açougueiro que gosta de ler o Dicionário

 Havia despachado todos os seus fregueses. Limpou as mãos no avental e continuou a conversar.

— Para falar a verdade, aprecio um jornal aos domingos. Sou um bocado maluco por um teatro pelo rádio. Mas o que me faz passar horas e horas na leitura é um dicionário prático ilustrado que comprei num sebo. Aquilo tem sabedoria para a gente aprender durante toda a vida!

— E romances?

— Acho chato.

— Nunca leu, nunca ouviu falar em José Lins do Rego, por exemplo?

— Qual é o cartaz dele?

 

Uma Criada faz Compras no Armazém

Com o cesto cheio de compras, a criada insiste com o caixeiro por um quilo de batatas. De súbito se lembra que tem ainda de ir à banca dos jornais comprar o "Diário de Notícias" para a patroa.

— Nunca foi a uma livraria comprar algum livro para a patroa?

— Vou, às vezes, comprar livro de receitas para doce.

— Nunca leu coisa alguma, você?

— Se eu pudesse o que tinha em minha casa era romance. Mas é uma dificuldade para se conseguir ler um romance. A patroa, uma vez, me ralhou. Disse que não devo ler romances porque posso me desviar. Os romances ensinam coisas feias mas eu gosto de ler e não vejo coisas feias nos que eu leio. Já li "Dois amores", "Namorada", "A moreninha". Vários. Tenho uma loucura para ler "E o vento levou". Mas ainda não sei quem tem. Comprar não posso.

— Você conhece o romancista José Lins do Rego?

— Ele é português?

— Um romancista brasileiro que escreveu "O moleque Ricardo", romance que conta a vida dos operários de Recife, dos pobres.

— Ah, queria ler. É lindo esse romance? Eles se casam no fim? Me empreste esse livro. Nunca ouvi falar nesse... como é bem o nome?

 

Encontro com uma Manicure

Encontramo-nos defronte do Silogeu. Fiz a minha pergunta.

— Ah. Era o nome todinho de meu namorado, respondeu-me a manicure. O que é que você quer me informar ao falar no nome dele? Que aconteceu com ele? Ele trabalhava num banco. Foi um ingrato. Passou-se.

— Casou-se? Ele escrevia!

— Escrevia, sim. Tenho muitas cartas dele. Cada qual a mais terna. Os homens não valem nada, meu caro.

— Mas, minha amiga, trata-se do romancista — José Lins do Rego. Desse escritor é que lhe quero falar. Conhece? Já publicou dez livros e há pouco um novo romance "Água Mãe" em que tala de um craque de futebol que morreu, depois, abandonado por todos. Uma história triste. Há também a história de uma lagoa e de uma casa fatídica...

— Não conheço esse senhor. Romance que li foi "E o Vento levou" que gostei muito. Li "Rebeca". Estou louca para ler "Rosa da Esperança". Sabe de uma coisa: o meu divertimento é o cinema. Mas vou procurar conhecer esse craque do romance. Como é bem o nome do livro? Depois, é o nome do autor tanto que me faz lembrar o meu namorado. Vou ler os romances dele para mantar saudades.



 

Fonte

REVISTA LEITURA [RJ, 1942-1968]. Ano 1942, Edição 001, p. 17-18. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.

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Todos os direitos reservados aos herdeiros de Dalcídio Jurandir.

 

Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Fevereiro de 2025. Notas, transcrição e revisão: Rafael Voigt Leandro.


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