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Sobre o esvaziamento da formação de professores de literatura

Atualizado: 16 de jun. de 2021

por Maria Amélia Dalvi*



versões em pdf, epub e kindle.

Em artigo anterior, publicado em 2018 neste mesmo veículo (Revista Voz da Literatura), dedicado à (então recém-publicada) Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mencionei alguns aspectos do “esvaziamento”, no que concerne às relações entre literatura e educação; entre tantos, recobro aqui um deles:



[...] os currículos de formação de professores (entre os quais os de literatura), seja na graduação, seja no mestrado, têm sido sistematicamente reformulados na direção de um esvaziamento de um corpo sólido e reconhecível de conteúdos, experiências e saberes oriundos de diferentes campos do conhecimento e na direção de uma defesa da formação “prática” ao custo do apagamento da formação e reflexão “teórica”. [1] (grifos meus)


O lastro ou chancela para esse esvaziamento da formação docente dos professores de Literatura adviria do discurso que advoga mais “prática”, em detrimento da “teoria”. Na ocasião, como meu foco era outro, não avancei nessa discussão, o que cumpre ser feito agora. [2]


Um autor celebrado, muito presente nos estudos sobre formação de professores, afirma, por exemplo, que: “o principal desafio para a formação de professores, nos próximos anos será o de abrir um espaço maior para os conhecimentos práticos dentro do próprio currículo” (Tardif, 2008, p. 241). Garcia, Fonseca e Leite (2013, p. 234) dimensionam a força que têm afirmações como essas: “A exaltação das virtudes da prática e dos saberes da experiência no campo da pedagogia e da formação de professores é um desses axiomas do qual poucos duvidam, sejam professores ou ainda aprendizes de professor, pesquisadores e intelectuais do campo educacional”. À luz dessa hegemonia da prática, “[A]s políticas oficiais para a formação inicial dos professores vêm instituindo uma forma de profissionalismo docente que tem no pragmatismo um dos seus pilares fundamentais” (Garcia; Fonseca; Leite, 2013, p. 234).


Assim, meu argumento vai no sentido de que, pensando dialeticamente, quanto mais avança esse “profissionalismo docente” propugnado pelo pensamento hegemônico e pelas políticas públicas, tanto mais se esvazia o trabalho do professor. Isso porque a hegemonia da (suposta) prática se baseia na dicotomia (e, portanto, no esquematismo e simplificação) da relação entre teoria e prática.


Essa dicotomização legitima a ideia perniciosa de que a atividade de ensino se pode fazer sem um denso trabalho intelectual (ou seja, fetichizam-se vivências, modelos e orientações práticas, colocando-se os professores no lugar de meros repetidores e divulgadores de “experiências de sucesso”). Desfaz-se, assim, a categoria de práxis (quando a teoria ganha força material e passa a transformar a realidade).


Sustentar a práxis, evidentemente, exigiria o estudo concentrado, a metarreflexão e o exercício crítico, articulados a um projeto de sociedade e de formação humana no qual a estrutura de uma sociedade dividida em classes com interesses antagônicos precisaria ser pautada... Elaborar tudo isso face ao objeto específico de conhecimento do professor de Literatura (a saber, a própria literatura, como atividade humana situada historicamente) requereria condições objetivas de trabalho decentes, que a imensa maioria dos professores não têm.


Portanto, é muito mais fácil disseminar perspectivas que fazem com que a prática rivalize com a teoria, que deem à prática (na qual a teoria foi subsumida, ocultada, invisibilizada) uma suposta precedência; assim, se transformam os professores em executores de políticas desenhadas por outrem, com interesses que não estejam claramente colocados na mesa e que, portanto, não possam ser compreendidos, problematizados e superados.


Minhas perguntas aos profissionais atuantes na educação básica e que se dedicam às relações entre literatura e educação são:


1) Quem ganha e quem perde quando a formação de professores de Literatura é restrita a um rol de conhecimentos produzidos por outros (críticos, teóricos, historiógrafos da literatura), convertidos em currículo e (portanto) em conteúdos escolares a serem ensinados, sem que se possa fazer o caminho de mão dupla?


2) Quais as implicações quando se transforma o professor da educação básica em um sujeito que só domina um saber técnico (o saber-fazer, a “prática”), quando não se o autoriza como um intelectual que intervém, pela qualidade do desvelamento teórico-prático da realidade, nos rumos sociais?


3) Quais as consequências do ponto de vista trabalhista quando a formação de professores pode ser reduzida a competências e habilidades listadas de antemão em documentos oficiais produzidos sem um diálogo realmente aberto com os sujeitos da realidade que orientam e/ou normatizam?


O esvaziamento da formação dos professores de Literatura tem como fundamento um discurso que separa e opõe prática e teoria, e que dá à docência um pragmatismo (por meio do fetiche da “prática” ou do “saber-fazer”) que não interessa à transformação de uma sociedade profundamente desigual – ou seja, um pragmatismo que rebaixa os professores a técnicos e que sequer questiona se o modelo de sociedade que a prática docente está reproduzindo interessa ou não aos próprios agentes do processo.


Esse movimento, acima descrito, tem como consequência que as lutas históricas do magistério perdem sua razão de ser; não sendo necessários estudo aprofundado e preparação, adensamento e reflexão (bastando, ao professor, ter bons modelos práticos para copiar, ou materiais instrucionais aos quais seguir...), por que seria necessário advogar por carreira, salários dignos, formação continuada, direito a afastamento remunerado para pós-graduação e mesmo tempo de planejamento compatível com as exigências da sala de aula?


Mas, como a extensão deste texto começa a exigir um ponto final, a professora Adriana Pin, integrante de nosso grupo de pesquisa, dará sequência ao debate no próximo número de Voz da Literatura, tratando, por outra perspectiva, do esvaziamento do currículo de literatura. Pin discutirá a importância de se assegurar o trabalho com obras clássicas integrais, propondo caminhos didático-metodológicos para que se superem as dificuldades que se interpõem entre textos distantes temporal e espacialmente e estudantes contemporâneos, nas escolas públicas brasileiras de educação básica. Depois dela, vários outros integrantes de nosso grupo se apresentarão, aqui, para a continuidade do diálogo.


***

MARIA AMÉLIA DALVI, doutora em educação e professora do magistério superior na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: maria.dalvi@ufes.br.

***


notas

1) Disponível em: https://www.vozdaliteratura.com/post/fformação-de-leitores-e-educação-literária-uma-base-que-desaba. Acesso em 12 mar. 2021.

2) O editor de Voz da Literatura, Rafael Voigt, generosamente abriu um espaço regular ao grupo de estudos e pesquisas Literatura e Educação, para reflexões mensais assinadas pelos integrantes daquele coletivo. O grupo é cadastrado no Diretório Geral de Grupos de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do Brasil e é chancelado pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo. Foi fundado em 2011 e, desde então, funciona ininterruptamente, sob coordenação da autora. As atividades do grupo podem ser acompanhadas pela página eletrônica www.literaturaeeducacao.ufes.br e pelo perfil na rede social Instagram: @literaturaeeducacao. Dele atualmente participam 48 integrantes, sendo pelo menos 12 doutores, de distintas filiações institucionais.


referências

DALVI, Maria Amélia. Formação de leitores e educação literária: uma base que desaba. Voz da Literatura, Brasília, nov. 2018. Disponível em: https://www.vozdaliteratura.com/post/fformação-de-leitores-e-educação-literária-uma-base-que-desaba. Acesso em 12 mar. 2021.


GARCIA, Maria Manuela Alves; FONSECA, Márcia Souza da; LEITE, Vanessa Caldeira. Teoria e prática na formação de professores: a prática como tecnologia do eu docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 29, n. 3, p. 233-264, Set. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-46982013000300010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13 mar. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-46982013000300010.


TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 241.


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