{Na edição de A Semana de 25 de setembro de 1886, saiu o segundo artigo de Júlia Lopes com impressões de sua viagem à Europa. A escritora escreve exclusivamente sobre Paris. Por ser mais longa, essa crônica foi publicada em duas partes por A Semana. Publicaremos de igual modo aqui na Voz da Literatura.}
PARIS
Chegamos a Paris, a bela, a ruidosa, a esplêndida Paris, em plena primavera.
Maio inundava a cidade com uma luz brilhante. A temperatura agradável, levemente fresca, atraía para os boulevards e para os jardins a curiosa população parisiense.
Em nenhuma quadra do ano, dizem os franceses, há tantos encantos na sua capital. Céu sem nuvens, aragens deliciosas e todos os divertimentos do inverno.
Não podia, portanto, ser mais bem escolhida a época da nossa primeira visita.
Entrando em Paris, parecia-nos, a nós que nunca lá fôramos antes, voltar a um lugar amigo, a um lugar onde parte da nossa vida se tivesse passado! Em cada bairro deparava-se-nos uma recordação... Tínhamos ansiedade de ver certos edifícios, certas ruas e praças, como se não só a curiosidade de os conhecer, mas as saudades deles nos mortificassem.
Como se explica esta anomalia?
Pela leitura, pela convivência com os autores franceses que se tem imposto a nossa admiração.
A grande e belíssima cidade tem nos sido descrita tantas e tantas vezes, por tão diversas penas. por tão hábeis coloristas, que seria impossível, que seria ingratidão até, não a conhecer já.
Por isso, em cada passeio víamos como que um lugar conhecido. Ainda mais: acompanhávamos muitas vezes com a vista um ou outro passeante que nos trazia à memória, clara, distintamente, os personagens dos livros que nos acompanharam e nos deleitaram durante muitas horas...
Nas Tulherias um velho caminhava, dando a mão a uma pequena, magra, de grandes olhos claros, rosto oval e pernas finas; olhavam-se com meiguice. a menina falava, o velho curvava a cabeça para ouvi-la...
Essa menina lembrou-me Cosette e esse velho, Jean Valjean…
Outra vez, passando por um banco do Jardim das Plantas, vimos aí, sentadas e em conversa íntima, uma velha magra e antipática e um burguês de ar misterioso... Naquelas duas criaturas, muito naturalmente inofensivas e, talvez, marido e mulher, pareceu-nos reconhecer o Sr. Poiret e Mlle. Michoneau contratando trair o forçado evadido - Vautrin, no romance de Balzac Le pére Goriot.
No boulevard, um rapaz novo, extravagante e pobremente vestido, parado em frente de um cartaz, a ler o anúncio do espetáculo, fez-me lembrar Petit Chose, o infortunado Petit Chose, pouco antes de ser surpreendido pelo bom irmão, o afetuoso Jacques...
A imaginação ia assim acordando todos os vultos das passadas leituras, fazendo-os palpitar, colocando-os no seu verdadeiro teatro, encarnando-os nessas pessoas que aí estavam diante de nós, sem nem de leve suspeitarem que eram observados com verdadeira atenção!
Não sabemos se sucederá o mesmo a toda a gente, mas o que afiançamos às leitoras é que essas palavras são o transumpto do que nós sentimos. A causa? A impressão da leitura, a curiosidade aguçada por ela.
Paris é a cidade essencialmente artística. A grande coquette que atrai, que seduz, que enleia.
Tem o riso pronto, o espírito sagaz, fino, sutil, nervoso.
Todas as fascinações irresistíveis, todos os brilhantismos da opulência.
Falar detalhadamente de tudo o que mais nos impressionou nela, seria uma temeridade sem vantagens; as nossas descoloridas descrições enfadariam as leitoras, que tantas vezes têm lido páginas soberbas a respeito da elegantíssima capital francesa, la plus gaie du monde.
A arte, o gosto, o luxo, têm aí o seu foco de irradiação.
A mulher parisiense, o verdadeiro modelo da elegância, tem, mais do que nenhuma, a arte de encantar.
Em toda parte onde as vimos, no baile, no teatro, na igreja, na avenida das Acácias, do Bosque de Bolonha, recostadas indolentemente nas fofas almofadas dos seus carros descobertos, as finas flores da aristocracia impõem-se pelas suas maneiras distintas, finas e gentis; como se impõem nos boulevards, nos jardins, nos passeios ao campo as burguesas, pela sua vivacidade e graça natural.
Um dia, passeando conosco sob os castanheiros floridos de Versalhes, a linda ville des souvenirs, dizia-nos uma parisiense pur-sang – “O primeiro de ver da mulher é ser agradável à vista...”
- E compreendem perfeitamente esse dever... as francesas; concluímos nós.
Ela respondeu com um sorriso, ajeitando no peito o lencinho de barra salpicada e aspirando o perfume dos lilases que levava na mão.
E os lilases? por toda parte os víamos: lilases roxos, lilases brancos, belos de forma, deliciosos de aroma.
Não há lugar em que as flores tenham como em Paris tamanha adoração. Esse culto prova superioridade de gosto. O mercado de flores em Paris atinge somas fabulosíssimas! Dão-se no boulevard des Capucines libras e libras por uns bouquets de rosas, umas corbeilles
Assistimos à exposição de flores da primavera no jardim do Palácio da Indústria. Encantadora!
Entre muguet, - a delicada flor que no Brasil chamamos campainhas de Maio e os ingleses Lily-May, que nasce espontânea nos campos de Minas, mas que julgo ser cultivada com desvelo na Europa, - entre muguet, vaporosa, branca, de perfume sutil e doce, brilhavam as coleções, ricas e variadas, de rosas, (todas já nossas conhecidas) petúnias, amores-perfeitos lindíssimos, orquídeas brilhantes, opulentas peônias, as clematites pálidas e lânguidas e uma infinidade de outras flores.
Não há exposição mais suavemente consoladora para o espírito do que uma exposição de flores.
A pátria de Alphonse Karr, o grande amigo das rosas e das violetas, tributa às flores uma admiração sem limites.
É de uma poesia, de uma infantilidade comovente esse amor puro num povo tão agitado por paixões violentas, tão ocupado com grandes espetáculos, tão febrilmente nervoso.
Mas é que o francês é requintadamente artista, e o verdadeiro artista adora a natureza.
Por isso, homens e senhoras aglomeravam-se extasiados, atirando ao ar as suas exclamações de entusiasmo em frente às rosas, nos gerânios, aos amores perfeitos, armados em almofadas, em grinaldas, em ramos, em cestas, em letras, etc., e apontavam com as frases mais lisonjeiras as orquídeas brilhantes, as belas parasitas, muitas das quais tínhamos aí, no nosso jardim, vindo-nos acordar n'alma a lembrança saudosa do nosso amado país...
(conclui no próximo n.º)
JÚLIA LOPES.
Fonte
A SEMANA [RJ, 1885-1895]. Ano 1886, Edição 091, p. 311. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.
Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Janeiro de 2024. Notas, transcrição e revisão: Rafael Voigt Leandro.
Leia a primeira crônica de Júlia Lopes sobre sua viagem à Europa em 1886.
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