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Feynman e os relatos de experiência de um cientista

FEYNMAN, Richard. Só pode ser brincadeira, sr. Feynman! Trad. Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra. 1.ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.



Em Convergências: os instrumentos literários e as outras disciplinas (Edusp, 2018), o pesquisador italiano Remo Ceserani, quando trata da relação entre físicos e químicos e a literatura, pergunta até que ponto o cientista para responder a seu objeto de pesquisa se vale de formas de linguagem sugeridas pela literatura.

Remo Ceserani não menciona o livro Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman!, mas bem que poderia, para caracterizar como as narrativas auxiliam, entre outras coisas, na difusão da ciência e das experiências vividas por um cientista.

Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman! (Ed. Intrínseca, 2019) compõe-se de “causos” contados e vivenciados pelo físico norte-americano Richard Feynman (1918-1988) em sua vida de quase setenta anos. As histórias foram coligidas por um de seus amigos, Ralph Leighton.

Originalmente publicado em 1985 - portanto quando Feynman ainda se encontrava vivo -, o livro desde então sempre foi sucesso de público. Feynman foi um cientista popular, principalmente após receber o Prêmio Nobel em 1965 com seus estudos da eletrodinâmica quântica. Depois também ajudaria na área de computação quântica.

Por mais de 35 anos, Richard Feynman atuou como professor: primeiro na Universidade de Cornell e em seguida no Instituto de Tecnologia da Califórnia, conhecido como Caltech.

O livro Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman! não pretende contar histórias sobre uma miríade de temas da física ou da eletrodinâmica quântica. Tais temas têm outro lugar reservado na bibliografia de Feynman, como a referenciada obra Feynman Lectures on Physics (1963).

O que há em Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman! são narrativas leves que cobrem desde a infância de Feynman, a de um garoto que consertava rádios, até histórias de um cientista ganhador do Nobel e que se recusou a prestar serviços às forças armadas dos Estados Unidos.

No entanto, neste último ponto, é relevante destacar que Feynman foi um dos cientistas responsáveis por colaborar com o desenvolvimento da bomba atômica pelo governo dos Estados Unidos, no Projeto Manhattan, ainda como estudante de pós-graduação em Princeton. Assim, no capítulo “Los Alamos visto de baixo”, relata Feynman sobre o espírito de época que animou a todos nesse propósito:

“Os alemães tinham Hitler, e a possibilidade de que criassem uma bomba atômica era óbvia; a de que a criassem antes de nós era assustadora.” (p. 129)

Uma ou outra das tantas das histórias distribuídas nos quarenta capítulos refletem um aspecto importante da vida de Feynman: o de professor. Um mestre que, em muitas oportunidades, deu aulas em forma de conferências, em várias partes do mundo. Sobre a vida de professor diz:

“Não sei mesmo o que faria se não fosse professor. Isso porque, tendo alguma coisa para fazer quando estou sem ideias e não vou chegar a lugar nenhum, posso dizer a mim mesmo: ‘Pelo menos estou vivo, pelo menos estou fazendo alguma coisa, estou dando uma contribuição.’ É uma questão psicológica.” (p. 195)

Nesse texto, “Respeitável professor”, Feynman narra que, ao começar a dar aulas em Cornell, ia com frequência à biblioteca e entre outras coisas gostava de ler por prazer As mil e uma noites. Era um contraponto a toda rotina de trabalho, assim como também era um contraponto a sua capacidade de “brincar” e se divertir com seu objeto de estudo. Quando aparentemente estava desanimado com a física em Cornell refletiu:

“Então pensei outra coisa: a física agora me desagrada um pouco, mas eu gostava de fazer física. Gostava por quê? Costumava brincar com ela.”(p. 203)

Essa característica brincalhona foi que permitiu a ele se aproximar de sua grande pesquisa sobre eletrodinâmica quântica, que resultou no prêmio Nobel.

Em algumas das narrativas, a personalidade de um cientista carismático, muito bem cultivada por Feynman, confronta-se com a de um sujeito muitas vezes sexista e machista. O que lhe rendeu muitas críticas. Sua conduta de “mulherengo”, com trechos de história sobre mulheres com as quais saiu por pura satisfação de seus desejos, causou certa polêmica, mas não ofusca de todo sua personalidade científica. Para amenizar essa postura, Feynman incentivou em várias ocasiões a participação de mulheres em campo científico dominado por homens.

Contudo, interessa mesmo em Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman! algumas das lições para aqueles que se interessam pelo fazer científico, como no texto “A ciência do culto da carga”, em que estimula os cientistas a indicarem os pesos e contrapesos de suas possíveis contribuições:

“Em resumo, a ideia é tentar fornecer todo tipo de informação que ajude outras pessoas a avaliar a importância de sua contribuição; não apenas a informação que leve a avaliação para um só dos lados.” (p. 390)

Experiências de Feynman como um percussionista amador são hilárias (“Desmascarado em Paris”). Outras parecem completar seu interesse pelos rumos da educação nas ciências exatas, como na participação que teve em seleção de livros didáticos da área de matemática na Califórnia (“Julgar livros pela capa”).

Nas tão diversas e inusitadas vivência de Feynman não poderia faltar uma menção ao capítulo “O americano, outra vez!”, em que Feynman compartilha sua passagem pelo Brasil como professor visitante no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas no início dos anos 1950.

No Rio de Janeiro, conta que, ao ser convidado para proferir uma palestra na Academia Brasileira de Ciências, não entendeu por que os palestrantes brasileiros faziam suas palestras em inglês. Ele mesmo havia preparado a sua fala em português, apesar de não conhecer a fundo a língua. Algo semelhante fazia em suas aulas, ministradas em português. Além de seu gosto pela percussão e sua imersão em bandas carnavalescas em Copacabana, Feynman critica o método de memorização praticado ente os estudantes universitários, por ser bastante limitador e pouco estimulante e por não privilegiar o aprendizado real dos alunos.

Ao final dessa breve incursão por Só pode ser brincadeira, Sr. Feynman!, retomamos a proposição de Remo Ceserani sobre como os cientistas se valem de recursos da linguagem literária em seus trabalhos.

Feynman é um bom exemplo disso nas narrativas de suas peripécias. Mas não procure literatura “stricto sensu” no livro. São relatos pessoais de experiência de uma vida repleta de prazer no fazer científico, que para ele não significava somente ficar enfurnado em um laboratório, e sim dar aulas, conversar com seus pares, pensar em possibilidades para a educação e difundir a ciência até mesmo para os leigos.

 

RAFAEL VOIGT, editor da {voz da literatura}.

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