Resenha de “Estórias sem luz elétrica”, de Ondjaki: A bicicleta que tinha bigodes (2011), Uma escuridão bonita (2013) e O Convidador de pirilampos (2017).
por Cristina Gemmino
"Há coisas que entram pelos nossos olhos e chegam aos nossos corações sem palavras de explicação". Pois. Entram por aí e nunca mais nos largam. Assumem formas e nuances diferentes cada vez que olhamos para elas.
Dependendo da sombra onde me encontro - se for debaixo de uma árvore ou agachada atras das cortinas da sala ou esperando pelo negrume que invade a praceta ao sol vanescer enquanto olho pelas letras penduradas lá naquela folha cor do escuro de Luanda (Angola) - volto a viajar.
Há coisas em forma de livro que viajam pelo Universo, poesando sem voz de falar mas de escrever. Esse é o Universo do Ondjaki em estórias que se propagam sem luz elétrica em Luanda: a de uma bicicleta, a de um beijo, e a de uma nova cientistação. Ou, mais simplesmente, A bicicleta que tinha bigodes (2011), Uma escuridão bonita (2013) e O Convidador de pirilampos (2017). Publicadas pela editora Caminho [Portugal]*, esses pequenos contos infantis podem ser vistos como uma tentativa, bem sucedida, de transformar em palavras os contos guardados numa caixinha pelo tio Rui, os desejos de estrelas e o alfabeto dos pirilampos.
Enquanto leio, volto a ser uma criança que quer ser presenteada com uma bicicleta, para conquistar a(s) liberdade(s) de que gozava antes que um inimigo invisível entrasse na minha, na nossa vida. É como se essa liberdade se tornasse a fogueira que os meninos de um bairro em Luanda acendem todas as vezes que por aí começa a faltar luz.
Todos os seres, nesse bairro, têm nomes. Até os animais da Isaura: temos o gafanhoto Samora Machel, o cão Amílcar Cabral, a lesma Senghor. Num mundo paralelo a sabedoria parece vir do mundo irracional dos animais, que se tornam humanos pela voz da Isaura. E todos os seres importantes parecem ter bigodes, como o tio Rui, ″[...] que é escritor e inventa estórias e poemas″.
Ao redor da figura do escritor é que se constrói a trama de A bicicleta que tinha bigodes: o Rui escritor é o guardião de letras que parecem estar penduradas nos bigodes dele que - quando as luzes das estradas do bairro se apagam e ficam apenas as nas casas dos outros - caem na caixinha que ele segura, enquanto a tia Alice tenta encortá-los. Nessa caixinha parece estarem presos os restos das frases de que o protagonista do livro precisa para escrever a estória e vencer o concurso da rádio Nacional, ganhar a bicicleta e partilhá-la com todos os meninos do bairro. A bicicleta se torna símbolo de viagem, de viagens e das voltas que aquele pequeno bairro-mundo dá.
Talvez este livro se tenha revelado a mim, para estar ora com a tia Alice, ora com a Isaura, ora com o JorgeTemCalma, ora com a Avó Dezanove, mas nunca comigo mesma, pois tal como o protagonista, pareço não ter nome, mas endereço: Luanda. Onde basta ter uma varanda no escuro de uma estrada qualquer e ser as estórias de todo o mundo ...
Existe também uma outra varanda-estrada sem luz elétrica, num recanto de Luanda, onde um menino inventa a moldura perfeita para o beijo que ele tanto cogita dar nela.
Um luar minguante, o espetáculo dos filmes ainda não vistos no Cinema Bu, "os dois brilhos apagados no lugar dos brilhos que um dia foram os olhos dela", o dedo da AvóDezanave: tudo é festa sem luz. Tudo! Até as páginas do livro são jogos de luz e sombras, de manchas que assumem os traços de um pé, de um passarinho ou de um avião voando alto ... Tudo, afinal, é Uma escuridão bonita.
"O Universo inventa desenhos usando candeeiros que nunca se apagam" e Ondjaki, na escrita, inventa Universos que se tornam completamente nossos. Sem possibilidade de largá-los.
O Conto rodeia o micro-cosmo desse cantinho em Luanda onde são as crianças os verdadeiros inventores e descobridores de mundos paralelos onde os adultos podem entrar se pedirem licença e acreditarem que tudo, mesmo tudo, numa porção de tempo sem segundos nem horas possa acontecer.
Ainda uma vez, Ondjaki convida-nos a abandonar o chão duro, firme, consistente, programado, e modelado que é essa nossa existência feita-adulto para agarrar aquele pedaço de Universo onde tudo pode ser respirado de novo, refeito, remodelado, reprogramado.
Pois, no balanço das não-horas do Universo, tudo pode ser!
"Pulmar vai, Pulmar vem" ...
"A ternura toca a alegria, a alegria traz uma saudade quase triste". Em outro livro por ele publicado, Ondjaki conclui assim uma das estorias que ele conta ao falar do desarrumo do coração das crianças.
Difícil se afastar desses livros seus. Difícil abandonar uma Floresta Grande num lugar sem nome que é esse céu que finge estar vestido só de nudez. Como a lua nova, um novo projeto acriançado vem com estrelas penduradas no corpo desnudo desse arvoredo.
Eu até então nem sabia que era possível "cientistar" os pirilampos, nem sabia que as estórias sem luz elétricas são as que deixam espaço à criatividade dos grandes e dos pequeninos. Um Avô e seu neto, uma imensidão que aumenta seu caminho a cada passo dado, onde uma multidão de pirilampos esperam por ser “cientistados”:
" – Pensei que todos os pirilampos pudessem brilhar, mas nunca soube que eles comunicavam.
- Ah, mas é porque eu já cientistei os pirilampos muitas vezes."
É nessa floresta que a criança, quase que como num concurso científico, mostra todas as suas últimas invenções feitas para colorir a escuridão que dentro e fora dele o espanta a cada noite.
Nessa ternura de saudade, eu também comecei a cientistar os brilhos das coisas, animadas ou que parecem estar inanimadas, pela varanda da minha casa e admirando-os quis entender a fala deles. Precisei da enciclopédia do Convidador de pirilampos para compreender melhor o que essa cintilação me dizia e conversar com ela.
Guardar tudo o que esplende na nossa vida é nossa maior missão. Ajudar para que esse esplendor assuma um brilho novo é nosso maior desejo.
Assim, para não estar despreparado, é preciso ter em nossas estantes esses três livros que compõem a trilogia das estórias sem luz elétrica do Ondjaki. Para, caso precisarmos, saber como lidar com o afeto, a solidão, o medo, mas acima de tudo com o amor.
CRISTINA GEMMINO, mestre em Traduzione e Letterature Interculturale pela Università degli Studi Roma Tre (2014), é doutoranda no Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE – IUL), dedicando-se aos estudos africanos, particularmente à literatura angolana e moçambicana.
* Nota da revista {voz da literatura}: no Brasil, essa trilogia foi publicada pela editora Pallas, do Rio de Janeiro.
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