O LIVRO E SUAS TECNOLOGIAS
Ana Elisa Ribeiro é professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens e do curso de Letras (Tecnologias da Edição) do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). É doutora em Linguística Aplicada pela UFMG, com pós-doutorados em Comunicação (PUC Minas), Linguística Aplicada (Unicamp) e Estudos Literários (UFMG). Escreveu várias obras em sua linha de pesquisa, sendo uma das mais recentes: Escrever, hoje. Palavra, imagem e tecnologias digitais na educação (Parábola, 2018). Como poeta, sua mais recente publicação é Álbum (Relicário, 2018). Na seara da literatura infantojuvenil, sua última produção é O que é um livro? (Editora UFMG, 2018). Nesta entrevista, Ana Elisa conversa com a {voz da literatura} sobre a obra Livro: edição e tecnologias no século XXI (Moinhos e Contafios, 2018). Entre outros temas, a entrevista aborda questões como a educação literária, o livro digital, o lugar do profissional de Letras no universo editorial, a bibliofilia digital e a presença de e-books em prêmios literários.
Os temas presentes nos ensaios de Livro: edição e tecnologias no século XXI, seu mais novo livro, têm muito a nos dizer sobre a leitura literária em novos suportes e diferentes formas de interação com o texto. Quais as implicações disso para o processo de educação literária?
Embora eu não tenha tratado especificamente de educação literária (ou de letramento literário, como poderia ser), sei que esse é um tema relacionado. Se considerarmos “educação literária" como algo das práticas sociais, isto é, não necessariamente ligado à instituição escolar, eu me arriscaria a dizer que temos, juntamente com novas possibilidades tecnológicas e novas práticas, mais chances, hoje, de que as pessoas leiam, e leiam literatura, em sentido estrito, sob menos censura e controle, inclusive. Tudo aqui será terreno pantanoso. Difícil dizer o que seja uma educação literária e o que seja, delimitadamente (e não limitadamente), a tal da literatura, mas é importante constatar que os canais para leitura são superdiversos hoje, em alguns casos chegam a ser pervasivos: as pessoas estão absurdamente conectadas a seus telefones móveis. Se os usarem para ler, tanto melhor. A interação com textos e suportes mudou, aumentou, diversificou-se, intensificou-se. Não posso dizer se para melhor ou pior. Os efeitos dessa avalanche de textos lidos e quase-lidos podem ser sentidos no nosso dia a dia e mesmo influenciando escolhas escandalosas que temos feito, em massa, nos últimos tempos. Bem, como prática social talvez a educação literária (ou leitora, para não ficarmos na literatura) possa se expandir. No entanto, a escola é um dos últimos espaços (e já precários) de contato massivo com a literatura propriamente dita. Se não for lá, onde mais será? Digo “em massa", considerando que temos pequenos grupos que podem provisionar esse contato da pessoa com a literatura, mas são de alcance restrito. No entanto, é justo a escola que vem sofrendo ataques moralistas inacreditáveis, o que nem é novidade alguma também. A escola é espaço de disputa de discursos, e dos mais controlados. É possível conhecer literatura lá, mas só alguma, certa, de poucas maneiras. Além disso, a escola, em geral, ainda não aderiu a leituras feitas em suportes digitais. Os livros didáticos continuam sendo calhamaços de papel, mesmo sendo tão provavelmente transponíveis para plataformas digitais, como gênero... e já que sofrem tantas mudanças e atualizações. Também não são constantes as indicações de livros de leitura literária para serem adquiridos como e-books. São ainda exigidos volumes de papel. Enfim... isto não é a uma defesa da digitalização (embora possa ser, quem sabe?), mas a educação literária, a leitura de textos literários, tem relação com a produção e os modos de consumo midiático, incluindo as tecnologias. Parece que temos, então, muitas possibilidades, mas também muita timidez e alguma dependência de decisões capitalistas ou políticas que nos escapam como consumidores.
O livro digital parece ainda não ter caído nas graças dos leitores. Imaginava-se que as novas tecnologias anunciavam a rápida extinção do livro impresso, porém isso não aconteceu. Esse fato está relacionado de alguma maneira aos processos editoriais?
É verdade. O livro digital não cumpriu a trajetória que os mais empolgados bradavam, uns anos atrás. O consumidor (vou falar de quem compra, para além do leitor) não fez essa troca automática, como queriam alguns. Há discursos e mais discursos sobre isso, em trânsito na imprensa e entre os pesquisadores do livro e da leitura, mas o fato é que os livros de papel ainda fazem mais sucesso, no geral. É importante pensar que isso depende do segmento. Não dá para falar de “livro", como se ele fosse uma coisa só, em termos de mercado ou de gênero. As enciclopédias impressas praticamente sumiram, de fato. Se olharmos apenas para elas, que são, tecnicamente, livros, sim, diremos que “o digital substituiu o impresso". No entanto, isso não ocorre à poesia nem ao livro didático, como disse antes. Eles continuam bem mais impressos do que digitais, se pensarmos no volume publicado. É claro que a poesia circula muito digitalmente, mas de forma isolada, etc. O livro literário continua sendo um objeto mormente de papel e valorizado como tal. Não houve então uma concorrência seguida de morte. E considero até ingênuo quando alguns começam as discussões prevendo isso, em mídias. A leitura atenta da história poderia ajudar a não produzir discursos assim, tão radicais. O leitor pode surpreender muito. As práticas sociais são mais fortes que as previsões e os normativismos. Talvez o livro impresso um dia seja extinto e talvez uma análise posterior possa dizer que isso foi rápido, pensando em uma história de longa duração. As décadas que vimos vivendo não foram ainda suficientes para fazer esse sepultamento. Tenho feito trabalhos sobre isso e diretamente com consumidores/leitores. Não tenho visto outro resultado. O que há é alternância e interpolação. Como disse o poeta: tudo ao mesmo tempo agora. Os processos editoriais são propriamente os responsáveis pela produção dos livros, sejam eles em que tecnologia forem. A tecnologia propicia, em alguma medida, ela guia e mesmo altera rumos. Ela precede a decisão editorial, em outra medida. Trabalhei em uma bem-sucedida editora de livros didáticos e infantis no início dos anos 2000. A mudança tecnológica do departamento editorial se fazia a olhos vistos, estávamos todos sob a transição, vendo ainda processos “velhos" lado a lado com novos. Trocando máquinas. Lembro-me bem do primeiro programa de “fechar pdf" que adotamos lá. Era um escândalo, uma alegria “fechar" um arquivo que não se desconfigurava mais. Horas e horas para fechar um livro. Tudo nos bastidores mudou. Lá na ponta, os livros continuam saindo impressos, se quisermos. A maioria das pessoas não tem conhecimento de como esse processo se dá. Só vão sentir se mudar o preço ou se for um livro lindíssimo ou feiíssimo. Para quem trabalha internamente nisso, é uma movimentação fascinante, e toda relacionada com tecnologias e processos.
Por que nos cursos de Letras ainda se discute tão pouco o livro em suas mais diversas dimensões, não só como produto intelectual? O livro é em sua natureza histórica um objeto multidisciplinar. O profissional da área de Linguística ou Literatura teria muito a contribuir nessa discussão e também muito a aprender nesse universo da edição de livros?
Esse é um mistério que não apenas me encafifa, como move toda a minha vida e a minha energia de pesquisadora, professora e profissional de edição, há pelo menos vinte anos. O livro aparece nos cursos de Letras como material, é claro, nas práticas dos estudantes. Os livros estão ali conosco, todos os dias. Mas eles raramente, no geral, aparecem como tema dos nossos estudos. Não o texto (literário, normalmente), mas o próprio livro. E penso que ele seja da nossa alçada. Muito. Claro que sempre existiram, aqui e ali, estudos que levavam a materialidade do livro em conta, mas institucionalmente era preciso enviesar a pesquisa, caber em algum rótulo, e raramente esse rótulo era “edição" ou estudos de edição. Hoje em dia, temos cursos de edição no Brasil. São todos jovens. Mas dou graças que existam enquanto estou viva. Alguns cursos de Letras entenderam que o livro é nosso objeto de estudo e de análise. E mais: de produção, vida profissional. Não sei por que a área se afastou tanto disso, em sua história. Talvez tenha dado mais foco no texto ou na língua, mas desmaterializados, entende? Como se um texto do Guimarães Rosa ou uma língua indígena prescindissem da discussão sobre objetos, suportes, modos de circulação. Bom, estamos chegando.
Um dos ensaios do livro chega a discutir a bibliofilia digital. Porém a noção do bibliófilo digital distancia-se daquela que temos do bibliófilo de livros impressos. O colecionismo de livro pode revelar dicotomias entre o digital e o impresso?
Aquele ensaio foi encomenda de um congresso. Foi, como ensaio que é, um exercício de pensar, de errar e tentar de novo, de acertar, eventualmente. O bibliófilo pode ser ainda um bibliófilo digital? A dicotomia entre digital e impresso, ao menos quanto ao consumo/uso, só me parece existir nos discursos, que vivem guerreando para ver quem fica, quem ganha mais. Na vida das pessoas, essa dicotomia conta como critério de exclusão. Conta, claro, para que um leitor ou uma leitora decida em que momento quer ler o quê, em que device. Não conta necessariamente como elemento exclusivo e excludente. O bibliófilo mais amplo pode muito bem juntar todas as suas bibliotecas, se assim o desejar. Eu ainda sou uma bibliófila do impresso. Coleciono livros sobre livros, na medida das minhas possibilidades. Conheço outras pessoas, uma ou duas muito especiais para mim, que também fazem isso. Mas o gesto de colecionar pode muito bem alcançar objetos e itens de outras naturezas tecnológicas. Por que não? Resta saber se vão se incluir entre os bibliófilos – aqueles que gostam de livros – ou se vão mudar o nome disso. É uma solução, sempre, não é? Se livro é livro impresso e digital, todos podemos ser incluídos sob a etiqueta do bibliófilo. Se livro digital não for livro – segundo o conceito da Unesco, por exemplo, não é... –, então teremos de arranjar outro rótulo para esse colecionismo de não-objetos ou de softwares não residentes.
Outro ponto debatido na obra é a hegemonia dos livros impressos em Prêmios Literários, eventos estes que são esferas de legitimação de autores e obras entre os leitores. A que se deve ainda essa hegemonia do livro impresso?
Sim, além de esferas de legitimação de obras e autores, também são legitimadores de outras coisas, como editoras e mesmo tecnologias. Quando um prêmio admite livros digitais na concorrência, mesmo estabelecendo critérios meio engraçados e anacrônicos, isso é uma estratégia – menos ou mais clara e consciente – para “puxar" ou “empurrar" uma cadeia produtiva, por exemplo. É como dizer: vamos lá, pessoal, agora vocês podem produzir livros digitais e concorrer a um prêmio que dá visibilidade e talvez ajude a incrementar suas vendas. E isso, eventualmente, ocorre. É possível medir isso a médio ou longo prazo. E não são apenas os prêmios que podem propiciar isso. Eles são um dos elementos que abordei porque o caso era muito evidente (o Jabuti). É possível verificar e analisar isso em editais. Quando sai um edital poderoso, tipo PNLD, dizendo que os livros didáticos precisam ter um elemento digital relacionado, as editoras, especialmente as que têm dinheiro, correm para fazer. O que não quer ainda dizer que o consumidor vá aderir, ainda mais no caso dos didáticos, que são livros de compra compulsória, no geral. Vale também para outros assuntos. Um edital ou prêmio de grande monta diz que vai admitir livros com temas indígenas ou étnicos, de modo geral... veja o que acontece imediatamente... Enfim, são tentativas de movimentar cadeias. Não vejo problema de o livro impresso ser ainda hegemônico. O curioso é ver a forma como os digitais começam a entrar, sob que discursos, de que maneira, de acordo com que preceitos de mercado. Que interesses estão por trás? Geralmente, não são exatamente os do leitor. Ou não em primeiro plano.
As redes sociais potencializaram e dinamizaram o processo editorial, de produção e circulação da literatura. O que também é estudado por você. Autores e editores têm cada vez mais percebido essa realidade. Para você, essa cultura literária nas redes sociais aponta para onde?
A literatura acha sempre jeito, fresta, fissura por onde passar, escoar, escorregar. Mesmo com tantas tentativas de controle e mesmo de censura, a literatura brota de todos os lados, em especial depois que achou outros canais. As redes sociais têm sido espaços de discussão, principalmente, mas também de produção literária. No livro, mostro os casos das percepções de alguns editores e escritores. Os blogs, mais que as redes sociais, foram espaços de criação literária, em especial quando apareceram, na virada do milênio. Hoje não figuram mais em primeiro plano, mas coexistem com sites, canais de vídeo, etc. A velocidade e o alcance da produção literária mudaram muito, desde a chegada da internet. Acontecem encontros e produções que dificilmente aconteceriam no mundo estritamente analógico. Quantos amigos poetas eu teria, em Portugal ou na França, sem a internet? Como eu trabalharia em uma revista literária com meu amigo José, no Porto? E com meu amigo Bruno, em São Paulo, produzindo uma coleção mensal? A literatura nas redes aponta para a profusão. Não entro no mérito da qualidade, talvez mais no da quantidade, mas já é alguma coisa, não? Mais que isso, só lendo meu livro. (risos)
{n. 9 | janeiro | 2019}
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