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Do Rio a Londres (1886) | Júlia Lopes


DO RIO A LONDRES

 

Oh! minha terra amada, acolhe as palavras que te envio, sempre cheia de amor e de saudades.

 

Ao deixar-te, eu, encostada à amurada do vapor, que me havia de trazer a plagas estrangeiras, olhava através das lágrimas para as tuas montanhas enormes, luxuosas de vegetação, erguidas entre o azul do céu e do mar, inundadas de luz dourada e quente, e pensava: - Aí fica a melhor parte da minha vida, toda a meninice e parte da minha mocidade...

 

Via-me em Friburgo, no Chateau, erguido entre pomares, ninho saudoso onde não deixei penas e donde tão pequenina saí, mas que me vinha à memória nitidamente, numa lembrança suave e acariciadora. Foi ali que balbuciei as primeiras palavras no aconchego do colo materno; foi ali que dei os primeiros passos, guiado pelas mãos previdentes e bondosas de minha irmã mais velha; foi ali que aprendi as letras, sentada nos joelhos de meu pai! Como não havia de sentir saudades?

 

Oh! Friburgo, como me vem à memória, como me alegra a lembrança dos meus folguedos aí! O recanto do jardim, onde fazia os grandes banquetes de bonecas… A espera de Mme. Grip ou de Mme. Cardianux, que deviam trazer manteiga fresca logo de manhã cedo, e que eu esperava pronta, com a minha tigela de leite natoso e a fatia de pão abiscoitado, ainda quentinho do forno… E as idas ao pomar, onde, sem caridade, as minhas companheiras mais velhitas e com mais força portanto, batiam com bambus nas pitangueiras luzentes, esmaltadas de frutinhas escarlates, que se espalhavam no chão donde as juntávamos?... E os pinheiros do caminho do Chalet, enormes, elevando a sua rama verde-negra dentre as árvores em redor?... E as acácias, mais adiante, amarelas e roxas, perto do riacho que descia soluçante entre gramados e pequenos bosques até lá embaixo, ao rio…

 

Que diferença haverá em tudo aquilo! Fiz bem em nunca mais lá voltar.

 

A alteração notada num lugar amado, como que se nos afigura um sacrilégio. Embora deixasse eu em ruínas o meu primeiro ninho, havia de sentir uma decepção triste no encontrá-lo, quando o procurasse num palácio moderno e confortável! O passado, esse nunca mais se encontra, eu sei; a vida é como a água de um rio, que vai e não volta mais; mas há um prazer indefinido em pisar a gente, depois de muitos anos, as tábuas que pisou em criancinha, e em pascer os olhos nas paredes da sua antiga habitação, dizendo: - Está tudo tal e qual!

 

Depois dessa quadra bonançosa, dos primeiros cinco anos de minha vida, vinha-me ao pensamento a capital do império, terra onde nasci, onde todas as alegrias tive, onde tão feliz fui! Depois... a serra de S. Paulo, a cidade em que morei, onde acordava ouvindo os cantos dos meus saudosos canários, a que respondiam lá fora as andorinhas, que iam pousar na janela de meu quarto, entre as hastes floridas das angélicas e as brilhantes folhas dos crotons... E o panorama que dessa janela eu desfrutava! Campinas, meio encoberta de um lado pelas casuarinas do mercado, deitada entre duas colinas, numa linha curva, inundada da luz branda e doce da manhã, destacada entre os campos e o arvoredo pelo desmaiado azul do céu, trazendo-me á lembrança um esmalte fino, completo, nítido, feito numa mimosa concha azul; depois as horas de estudo e as de trabalho, a sala de costura, a voz sonora de uma de minhas irmãs recortando no ar uns trinados alegres; as músicas estudadas a quatro mãos com outra, as visitas de uma amiga íntima; a chegada do carteiro com as cartas e os jornais da Corte; os risos expansivos de meus sobrinhos... à noite o serão, todos à roda da mesa, as senhoras tricotando ou bordando, os homens fazendo e desfazendo paciências, e em frente a uma de nós, sobre o pano cinzento da mesa, aberto um livro, que é lido em voz alta e com imenso interesse ouvido: D. Quixote de la Mancha, por exemplo, o delicioso livro de Miguel Cervantes, tão originalmente belo!

 

Depois... oh! a fantasia volta aos mesmos sítios donde partiu. Vê as alegres manhãs de Dezembro... o nosso jardim...vê... Mas o vapor abala-se e vai singrando as águas da esplêndida baía do Rio de Janeiro; a pouco e pouco desvanece-se no horizonte esta ou aquela montanha... o dia vai descaindo, uma aragem forte seca-nos os olhos cansados de chorar, e a voz prudente de uma santa e desvelada amiga aconselha-nos a que nos vamos sentar num canto agasalhado.

 

No dia imediato balançava-se o vapor entre céu e água. Nem uma sombra no horizonte indicadora de terra!

 

Entre os passageiros do Arawa, vinham só duas famílias brasileiras e uma portuguesa; todos os mais eram ingleses, ou australianos. As senhoras sempre preparadas como para passeio, de chapéus com flores e luvas de pelica, passeavam a passos largos pelo tombadilho.

 

Eu julgava as inglesas pouco ou nada acessíveis; tinha-as em conta de inatacáveis e não me atreveria nunca a dirigir-me diretamente a qualquer delas. Abri, pois, o meu livro, Tartarin sur les Alpes, que mãos queridas me haviam dado no apartamento, e pus-me a ler. Estava ainda no primeiro capítulo, quando uma voz estranha me interrompeu a leitura.

 

Era uma senhora inglesa que, curiosa, veio fazer-me algumas perguntas a respeito do Brasil. Respondi-lhe da melhor vontade e estabelecemos assim relações; à noite tinha conversado já com muitas e muitos deles e acompanhado ao piano um cantor nas suas músicas.

 

Os ingleses não cantam geralmente senão no seu idioma.

 

Os seus romances tem todos como que o mesmo ritmo, são monótonos, são pálidos e tristonhos. Durante os dezoito dias que vivi a bordo ouvi cantos ingleses, irlandeses e sobretudo escoceses; italianos, franceses e alemães, nunca! É que os ingleses, em geral, detestam as línguas estrangeiras, a julgar pelo pouco que as estudam. Há um certo egoísmo altivo no modo porque declaram que só em inglês cantam, que só inglês leem e que só inglês falam. Esmeram-se, educam-se na sua língua materna; nós, mais superficiais talvez no estudo da nossa, procuramos aprender as alheias e conseguimos, às vezes, cousa espantosa e realmente triste! saber mais a fundo uma língua estrangeira, do que a que temos por dever sagrado conhecer bem!

 

Apesar dos concertos e dos bailes, em que os cavalheiros se apresentavam en grande tenue, da leitura do jornal, às segundas-feiras; dos diversos jogos, da delicada atenção da oficialidade para com os passageiros; e da biblioteca do vapor, que não era má; apesar de todas as vantagens, enfim, enfastiava-me horrorosamente a longura daqueles dias e daquelas noites!

 

Tínhamos já bastante tempo de viagem, quando chegamos a Tenerife.

 

Ver terra alegra o navegante; é um consolo, um refrigério, um descanso. Ainda mal se divisavam além as montanhas da pitoresca ilha, confundida no horizonte com as nuvens azuladas, e já nós, de binóculo em punho, numa ansiedade desculpável, púnhamo-nos a olhar para ela, com simpatia, com alegria, mesmo!

 

O Pico de Tenerife estava encoberto pela neblina. Fazia frio, muito frio.

 

Viam-se de um lado as montanhas cobertas de neve, do outro cobertas de vegetação, e em baixo, à beira-mar, a casaria irregular da ilha, edificada no estilo espanhol. A cercar o Arawa, logo que este aportou, afluíam os botes dos mercadores de frutas, aves, chocolate e fumo, falando todos muito e muito alto, zangando-se entre si, oferecendo aos viajantes tudo o que traziam, em repetidas súplicas.

 

Aquele quadro animado e brilhante, a terra, a neve, o arvoredo, a gente de outro tipo e de outra língua muito diversa da que ouvíamos desde pela manhã até à noite a bordo, quebrou a monotonia dos dias passados entre céu e água, com vento contrário, cortante e frio. A vida no mar é agradável para quatro ou cinco dias, mas deveras fatigante para muitos.

 

Eu gosto dela, note-se. Sentia-me bem, seguindo à noite a marcha das estrelas, recostada na cadeira de vime, em cima, no tombadilho; gostava de ver a esteira branca feita pelo movimento do vapor; agradava-me a convivência dos companheiros e sentia-me forte; mas, mesmo assim, desejava-me em terra, gozando outros espetáculos variados e novos.

 

Pôs-se de novo em marcha o grande Arawa, para Plymouth.

 

Passamos bem perto de S. Vicente, a triste e árida ilha, mas não paramos aí.

 

O resto da viagem correu maravilhosamente. A baía de Biscaia - a tão temida baía, foi para nós gentilíssima: mar sereno, transparente, liso, foi todo um madrigal lisonjeiro, fez-se lago para a passagem do Arawa.

 

As gaivotas, - nunca vi tantas! - cercavam em bandos bulhentos o paquete, refletindo-se na água os seus voos. Os bem cultivados campos dos baixos montes de Plymouth prenderam-nos a atenção, bem como as fortalezas à beira-mar e sobre as colinas, sentinelas altivas destacando-se do suave colorido dos prados e do fundo pálido de uma manhã de inverno.

 

Só no dia seguinte devíamos chegar a Londres, e só no dia seguinte chegamos. O Tâmisa, cuja entrada me impressionou agradavelmente, não nos deixou ir até a grande cidade, tão baixa tinha a maré. Desembarcamos, pois, em Gravesend, triste bairro de operários das docas; aí tomámos o comboio. Minutos depois passávamos por entre uma multidão de chaminés, e, ao entardecer, em uma tarde chuvosa e fria, chegamos à grande, à imensa capital do mundo comercial, à opulentíssima Londres.

 

Lisboa, 28 de Junho de 1886.

 

JULIA LOPES.



 

Fonte

A SEMANA [RJ, 1885-1895]. Ano 1886, Edição 084, p. 253. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.


 

Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Janeiro de 2024. Notas, transcrição e revisão: Rafael Voigt Leandro.


 

Leia a primeira matéria da série da Voz da Literatura sobre as crônicas de viagem de Júlia Lopes


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