por Carlos Eduardo Pereira
É possível acompanhar sua dificuldade ao vestir estas roupas pesadas. É possível vê-lo, curvado, tentando calçar uns coturnos que não cabem. O calor, a barriga incomoda bastante. E não apenas isso. Tecnicamente nem seria necessário, já que o evento acontece amanhã, a festa, de modo que o esforço de agora não passa de um ensaio.
Mais cedo, saiu para o seu passeio de todos os dias. Passou pela banca, cumprimentando com a cabeça o sujeito das revistas e jornais. Que não retribuiu propriamente o meneio, apenas grunhiu de volta feito um animal selvagem. Não sabe como se chama o tal sujeito, o que é estranho, devido a uma obsessão de guardar o nome de quem quer que seja. Esbarra com alguém na rua, no corredor do prédio, e logo vai chamando pelo nome, depois repete, em voz alta, umas três ou quatro vezes, e anuncia que é para não se esquecer. Esbarra com o verdureiro da esquina e é assim. Esbarra com a tia da creche e é assim. A babá vindo com o filho da patroa e também é dessa forma: ele para na frente do carrinho, na calçada estreita, brinca com o bebê, alisa seus cabelos, ao mesmo tempo diz tá bonito o dia hoje, né, Ceiça? E esse garotão aqui, já tá na escola? A babá dá uma meia-parada, sorri de um jeito torto, dispara a desculpa de sempre e vai embora. Se posta ali por alguns instantes, vendo a babá se afastar, acompanhando seu requebrado. Quando ela some de vista, ele olha para um lado e para o outro, procurando saber se não vem mais nenhum conhecido, então parte para conferir as capas com as garotas do mês, com as dietas inacreditáveis, com as atrizes exibindo a boa forma na Ilha de Caras ou no Baile do Vermelho e Preto. Fica olhando aquelas bundas, aquelas bocetas selvagens. Mesmo a mulher de maiô na pose contorcida de ioga interessa.
Faz isso de guardar os nomes das pessoas – ou faz questão de chamar pelo nome essas pessoas – por uma lógica dele. E é de se perguntar de onde vem essa necessidade monstruosa de chegar mais perto. Isso nem sempre é possível. Ainda que a maioria não seja capaz de ler, diretamente, todos os pensamentos que vão pela sua cabeça. Ainda assim. Talvez seja por medo. Medo de cair no chão e ser pisoteado (talvez ele tropece), medo da violência, de que um desses sem-teto por quem finge amizade o agrida a estocadas. Um palpite razoável: chama todos pelo nome, sim, para poder chegar mais perto em segurança, para que não se voltem contra ele, para que eles não ataquem. Não rasguem suas roupas e lhe arranquem sangue. Para que eles, como são seus amigos, descontem a sua revolta em outro miserável. Por isso parece tratar essas pessoas muito bem. Para que elas o poupem.
Há quem concorde em lhe fazer companhia em seu apartamento. Geralmente uma dessas criaturas de rua, às vezes uma profissional, e ele diz fique à vontade, Fulana, já comeu alguma coisa hoje? Faz as perguntas, que são sempre as mesmas, e liga o vídeo com um torneio de ginástica olímpica, esporte que aprecia, mas não faz questão de acompanhar ao vivo no ginásio. Ele até já experimentou: a arquibancada fica longe demais, prefere assistir às atletas pelo zoom da tela. As visitas nunca se repetem, e ele as chama, é claro, pelo nome. Digamos, Valéria. Ele conduz Valéria ao banheiro, fala Valéria, tome um banho, por favor. E fica da porta olhando. Depois oferece uma toalha, ajuda Valéria a enxugar seus cabelos. Eles voltam para o quarto, onde oferece Valéria, pode colocar estas roupas? E a observa vestindo uma lycra muitas vezes apertada, a ponto de deixar marcas na virilha. Em seguida Valéria, consegue acompanhar esses movimentos de corpo? Não se preocupe em sair igual, apenas dê o seu melhor, sim? Ele então se masturba, de olhos e boca escancarados, diante dela, que imita as ginastas da tevê. Eventualmente corrige a posição de Valéria, com bengaladas firmes na canela ou no lombo da moça. (Valéria, a perna tá baixa demais. Valéria, estufa os peitos.)
Nessa época do ano, gasta mais tempo passeando pelo bairro, passa mais vezes pela vitrine da loja de brinquedos. Vê muitos meninos fazendo pirraça, esperneando por causa da boneca, ou dinossauro, que passou na propaganda do Discovery Kids. A mãe dizendo que não tem condições, que tá que é o olho da cara, quem sabe depois do Natal? E ele se aproxima devagar. Alega que se derrete com criança chorando, e se oferece para comprar-lhe o presente. Tem mãe que aceita. E aí dá gosto de ver o sorriso inocente da criança.
E se recorda então do passado, da sua criança, cuja mãe carregou para bem longe e depois disso nunca mais. A criança que hoje pode ser uma mulher adulta. Essa lembrança não vem muito claramente, aparece que nem um sussurro. E deus sabe o quanto ele odeia sussurros. Aquele chiado que entra rasgando pelo ouvido, e segue arranhando até chegar num ponto específico da cabeça onde possa cravar as suas garras. E fica lá, pulsando. Não tem condições de se lembrar direito dessas coisas antigas. Pode ser que por causa da idade, foi perdendo os detalhes de tudo. Sua memória é cheia de manchas, ocupando o lugar de acontecimentos que ele sente que ainda estão por ali, mas encobertos. Hoje em dia faz exercícios mentais para minimizar essas perdas, exercícios simples como tomar banho de olhos fechados. (Estratégia eficaz para ativar a memória visual. Ao fechar os olhos você recompõe o ambiente na cabeça, o que ajuda a estimular o cérebro. Ele toma o banho inteiro assim, procurando os produtos pelo tato, sem o auxílio da visão.) Exercícios que aprendeu já não se lembra onde, e podem ser bastante úteis para diminuir o prejuízo financeiro com a compra recorrente de guarda-chuvas, por exemplo, que vive esquecendo em todo lugar.
Esse ano, a festa de Natal do condomínio vai ser no playground. A síndica mudou e a que entrou no seu lugar acabou aceitando a sugestão dele, na assembleia convocada para tratar de uma cota-extra. A sugestão para que ele fosse o Papai Noel dessa vez, e não mais o magrinho contratado de sempre.
Agora, enxuga o suor da testa com um lenço, antes de botar o gorrinho. Se apruma o mais que pode diante do espelho, apoiado na bengala de punho retorcido (ele prefere essa à muleta de alumínio que, embora mais leve, machuca o antebraço, deixa marcas vermelhas que parecem mesmo arranhões). Desgrenha com os dedos os fios brancos da barba que cultivou por meses. Uma barba verdadeira. Uma espécie de símbolo dos sentimentos verdadeiros que devem aflorar não apenas no Natal, mas em todos os dias.
CARLOS EDUARDO PEREIRA, escritor, é autor do romance "Enquanto os dentes" (Todavia, 2017). Publicou recentemente o conto "Selvageria" na Coleção Identidade da Amazon Kindle Direct Publishing: https://amzn.to/2A5Li3w
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