por Rafael Voigt
Carne crua é o mais recente livro de contos de Rubem Fonseca. O autor dispensa apresentações, por sua vasta obra de reconhecimento nacional e internacional produzida desde os anos 60.
Importa registrar que, em Carne crua, a “crueza” do estilo do contista Rubem Fonseca continua a resultar em contos - quase sempre narrativas bem curtas - de valor inestimável para a compreensão do espírito contemporâneo, principalmente da realidade brasileira.
O aguçado senso de humor e ironia perpassam um sem-número de temas que nos põe diante da violência, de crimes passionais, de assassinos em série, do canibalismo, do erotismo, da religiosidade, da juventude, do papel da internet em nossas vidas.
Aqui cabe um parêntese como hipótese de leitura: as sucessivas mortes e assassinatos em vários contos parecem servir de metáfora para uma leitura menos banalizada da vida, da morte e da própria violência, embora se esteja, muitas vezes, diante de um sangue que escorre como aquele da tela dos noticiários da televisão e dos jornais todos os dias.
Desse universo, um conto um pouco mais longo desponta como uma obra-prima: "Nada de novo".
Os crimes de sucedem, porém o registro de hábitos e costumes, incluindo a dos preconceitos, pontuam os textos, como em "A praça", em que o narrador tem um olhar nada complacente para com gordos e com a obesidade.
Rubem Fonseca é capaz também de experimentar uma espécie de conto em versos, sem fugir da narratividade de sua personalidade literária, como em "Aparecida", "Necrotério" e "O ser é breve".
E para este final de ano há ainda contos sobre a figura do Papai Noel, porém nada romantizados.
Outra qualidade inegável da textualidade de Rubem Fonseca é a sua comunicabilidade com o leitor. A suposta simplicidade de sua prosa aproxima o leitor, o que pode servir como boa estratégia para professores em sala de aula na mediação da leitura e no engajamento de novos leitores.
Não é demais recomendar Rubem Fonseca para novos autores. Há boas lições a se colher em Carne crua nesse mestre da prosa.
RUBEM FONSECA E A DITADURA MILITAR
por Tony Monti *
Em um momento de tanta polarização política como o atual, vale um comentário sobre a contraditória relação entre Rubem Fonseca, sua literatura e o Golpe de 64.
Fonseca foi membro ativo do IPES, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, entidade central na conspiração contra João Goulart que culminou no Golpe Civil-Militar de 64, o que deu ao escritor a pecha de golpista e direitista.
No entanto, a literatura de Fonseca nos anos da ditadura tornou-se, moralmente, ainda mais corrosiva do que já era. Ao dar voz a inúmeras figuras da marginalidade social, procedimento associado a descrições precisas e cruas de sexo e de violência, construiu pela via estética seu questionamento do sistema vigente.
A contradição entre o apoio inicial e o questionamento posterior ao Regime teve seu episódio mais agudo na censura oficial a seu livro "Feliz ano novo", em 1975.
* Tony Monti é escritor e doutor em literatura pela USP com a tese “Escritores e assassinos: urgência, solidão e silêncio em Rubem Fonseca" (2011).
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