top of page
Foto do escritor{voz da literatura}

Autorretrato: Graciliano visto por Graciliano

Atualizado: 8 de dez. de 2022

{Este é um autorretrato de Graciliano Ramos, escrito pelo autor para a primeira edição da extinta revista Leitura, de dezembro de 1942}





Nasci em 27 de outubro de 1882, em Quebrângulo, Alagoas, donde saí com dois anos. Meu pai, Sebastião Ramos, negociante miúdo, casado com a filha dum criador de gado, ouviu os conselhos de minha avó, comprou uma fazenda em Buíque, Pernambuco, e levou para lá os filhos, a mulher e os cacarecos. Ali a seca matou o gado - e seu Sebastião abriu uma loja vila, talvez em 95 ou 96. Da fazenda conservo a lembrança de Amaro vaqueiro e de José Baía. Na via conheci André Laerte, cabo José da Luz, Rosenda Lavadeira, padre João Ignácio, Felipe Benício, Theotoninho Sabiá e família, seu Batista, dona Maricas, minha professora, mulher de seu Antonio Justino, personagens que utilizei muitos anos depois. Aprendi a acarta de A B C em casa, aguentando pancada. O primeiro livro, na escola, foi lido em uma semana; mas no segundo encrenquei: diversas viagens à fazenda de um avô interromperam o trabalho, e logo no começo do volume antipático a história besta dum Miguelzinho que recebia lições com os passarinhos fechou-me, por algum tempo, o caminho das letras. Meu avô dormia numa cama de couro cru, e em redor da trempe de pedras, na cozinha, a preta Vitória mexia-se, preparando a comida acocorada. Dois currais, o chiqueiro das cabras, meninos e cachorros numerosos, soltos no pátio, cobras em quantidade. Nesse meio e na vila passei os meus primeiros anos. Depois seu Sebastião aprumou-se e em 99 foi viver em Viçosa, Alagoas, onde tinha parentes. Aí entrei no terceiro livro e percorri várias escolas, sem proveito. Como levava uma vida bastante chata, habituei-me a ler romances Os indivíduos que me conduziram a esse vício foram o Tabelião Jerônimo Barreto e o agente do correio Mario Venâncio, grande admirador de Coelho Neto e também literato, auto dum conto que principiava assim: "Jerusalém, a deicida, dormia sossegadamente à luz pálida das estrelas. Sobre as colinas pairava uma tênue neblina, que era como o hálito da grande cidade adormecida". Um conto bonito, que elogiei demais, embora intimamente preferisse o de Paulo Kock e o de Júlio Verne. Desembestei para a literatura. No colégio de Maceió, onde estive pouco tempo, fui um aluno medíocre. Voltei para Viçosa, fiz sonetos e conheci Paulo Honório que em um dos meus livros aparece com outro nome. Aos dezoito anos fui com a minha gente, morar em Palmeira dos Índios. Fiz algumas viagens a Buíque, revi parentes do lado materno, todos em decadência. Em começo de 1914 enjoado da loja de fazendas de meu pai, vim para o Rio, onde me empreguei como foca de revisão. Nunca passei disso. Em fim de 1915, embrenhei-me de novo em Palmeira dos Índios. Fiz-me negociante, casei-me, ganhei algum dinheiro, que depois perdi, enviuvei, tornei a casar, enchi-me de filhos, fui eleito prefeito e enviei dois relatórios ao governador. Lendo um desses relatórios, Schimidt imaginou que eu tinha alguma romance inédito e quis lançá-lo. Realmente o romance existia, um desastre. Foi arranjado em 1926 e apareceu em 1933. Em princípio de 1930 larguei a prefeitura e dias depois fui convidado para diretor da imprensa oficial.

Demiti-me em 1931. No começo de 1932 escrevi os primeiros capítulos de S. Bernardo, que terminei quando saí do hospital. As recordações do hospital estão em dois contos publicados ultimamente, um em Buenos Aires, outro aqui. Em janeiro de 1933 nomearam-me diretor da instrução pública de Alagoas - disparate administrativo que nenhuma revolução poderia justificar. Em março de 1936, no dia em que me afastavam desse cargo, entreguei à datilógrafa as últimas páginas do Angústia, que saiu em Agosto do mesmo ano, se não estou enganado, e foi bem recebido, não pelo que vale, mas porque me tornei de algum modo conhecido, infelizmente.


Mudei-me para o Rio, ou antes, mudaram-me para o Rio, onde existo, agora. Aqui fiz o meu último livro, história mesquinha - um casal vagabundo uma cachorra e dois meninos. Certamente, não ficarei na cidade grande. Preciso sair. Apesar de não gostar de viagens, sempre vivi de arribada, como um cigano. Projetos não tenho. Estou no fim da vida se é que a isso se pode dar o nome de vida. Instrução quase nenhuma. José Lins do Rego tem razão quando afirma que a minha cultura, moderada, foi obtida em almanaques.

N. R. - O último livro a que Graciliano Ramos se refere chamando-o de "história mesquinha - um casal vagabundo, uma cachorra e dois meninos" é Vidas Secas - um grande romance consagrado pela crítica brasileira. Depois dele, além de artigos e contos espalhados pela imprensa do país, Graciliano fez, de parceria com Aníbal Machado, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego, o romance Brandão entre o mar e o amor. [Nota do redator da revista Leitura]


 

Fonte: REVISTA LEITURA [RJ, 1942-1968]. Ano 1942, Edição 001. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira, Fundação Biblioteca Nacional.

 

Todos os direitos reservados aos herdeiros de Graciliano Ramos.

 

Projeto Memorial da Literatura. Revista Voz da Literatura. Dezembro de 2022.

0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

© 2023 Revista Voz da Literatura

  • Youtube | Voz da Literatura
  • Facebook | Voz da Literatura
  • Instagram | Voz da Literatura
  • Twitter | Voz da Literatura
  • Linkedin | Voz da Literatura
  • Pinterest | Voz da Literatura
  • Spotify | Voz da Literatura
  • Soundcloud | Voz da Literatura
  • Apple Music | Voz da Literatura
bottom of page