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Arthur Azevedo: "Conto de Natal"

O Natal de 2020 se aproxima e também o lançamento do nosso e-book Natal brasileiro em prosa: 1854-1932, antologia que reúne 20 autores, entre eles: Arthur Azevedo. A seguir, publicamos na íntegra o capítulo com seu "Conto de Natal".

 

1906


Kosmos (RJ, 1904-1909) é uma das mais marcantes revistas culturais do início do século 20, com projeto gráfico inédito para seu tempo, contando com ricas ilustrações e fotografias. Alguns dos principais escritores da época participaram de suas edições. O escritor e dramaturgo Arthur Azevedo (MA, 1855-RJ,1906), figura de destaque do teatro de revista, contribui em alguns números da Kosmos. Entre outros textos, oferece ao leitor o “Conto de Natal”, narrativa publicada na edição de dezembro de 1906. Depois esse conto aparecerá em livros com reuniões de seus contos.


 

Conto de Natal



I


Das janelas da sala de jantar dos barões de Santa Bárbara, nas Laranjeiras, via-se o interior da miserável casinha onde morava o Alexandre, pobre diabo desempregado e enfermo, vivendo de expedientes confessáveis, carregando a vida com um esforço quase sobre-humano.


Fosse ele sozinho, e tudo iria pelo melhor; mas era casado, e lhe nascera um filhinho nas proximidades daquele Natal de 1871. Vir ao mundo uma criança, pelo Natal, numa casa sem pão nem conforto, é uma dessas ironias da sorte, que só se toleram à força de filosofia. O Alexandre era filósofo.


Os barões de Santa Bárbara, que possuíam grandes cabedais, desejavam ter filhos e não os tinham. É sempre assim. A baronesa, das janelas da sala de jantar, olhava com inveja para a mulher do Alexandre. A mulher do Alexandre era pobre, paupérrima, quase indigente, mas tinha o prazer e o orgulho de amamentar um filho!


***


Na véspera daquele Natal de 1871, os barões de Santa Bárbara, enquanto esperavam o almoço debruçavam-se à janela, e viram no interior de um quarto, na casinha do Alexandre, o recém-nascido deitado numa caixa de batatas, envolvido em trapos.


O barão que não era insensível às misérias do próximo, encheu-se de piedade, tanto mais que, pela coincidência do dia em que o acaso lhe deparava tão lastimoso espetáculo, parecia-lhe o próprio Menino Jesus que ali estava deitado naqueles trapos, mas um Menino Jesus desprezado pelos Reis Magos e pastores, um Menino Jesus com alfazema, talvez, mas sem incenso nem mirra.


Sabia o barão que a baronesa era muito egoísta: não gostava de praticar o bem nem mesmo por ostentação; foi, por isso, com certo receio que lhe propôs enviarem algum socorro aos vizinhos pobres; quando mais não fosse, umas roupinhas para o bebê.


― Estás doido! respondeu ela. Nunca mais nos largariam a porta!


― Mas não era preciso que soubessem de onde partia o benefício; a nossa esmola seria anônima...


― Qual! deixa-te dessas ideias! Eles precisam, é certo, mas há quem precise ainda mais, e não seria justo socorrer somente a estes, quando não podemos acudir aos outros! Por que esse exclusivismo? E depois, tu sabes lá que espécie de gente é essa? Tu sabes se empregaríamos bem a nossa caridade? Deixa-te dessas ideias, homem de Deus, e vamos almoçar, que a mayonnaise está na mesa.


Comemoram ambos o almoço triste dos esposos que pensam diversamente um do outro, sem filhos que atenuem o que possa ter de inconveniente e dolorosa a divergência de sentimentos e impressões.


Inteligente e sensato, o barão não contrariava a baronesa, embora no íntimo lhe detestasse o caráter, e não perdoasse tanto egoísmo numa criatura que lhe trouxera, quando se casou com ele apenas a roupa do corpo e o próprio corpo. Fazia-lhe todas as vontades.


Foi assim que comprada aquele título ridículo de barão de Santa Bárbara, nome da fazenda onde ele nascera, e era propriedade sua, na província do Rio.


Todas o tinham em conta de um marido domado pela mulher, quando o que o dominava era apenas o desejo de viver com ela em aparente harmonia, sem dar aos criados, nem aos vizinhos, nem a si mesmo o espetáculo mofino de um casal desunido.


O barão saiu logo depois do almoço e foi a carro para o seu escritório da rua de São Bento.


Como a lembrança do pobre pequenino, deitado no caixão de batatas, o perseguisse com a insistência de um remorso, ele chamou em particular um empregado de confiança, incumbiu-o de comprar um berço, um enxoval completo de recém-nascido, peças de morim e de chita, latas de leite condensado, vidros de geleia, garrafas de vinho do Porto, etc., e mandas tudo, e mais algum dinheiro, à casa do Alexandre, sem que ninguém soubesse nem suspeitasse a proveniência desse presente.


O empregado cumpriu irrepreensivelmente as ordens do patrão, e foi com uma surpresa, manifestadas por frases impertinentes, que a baronesa viu, à tardinha, o caixão de batatas substituído por um berço de vime e os andrajos por boa roupa.


― Vês? disse ela ao barão. Faríamos asneira se lhes mandássemos alguma coisa: não lhes falta nada!


Pouco tempo depois, a família do Alexandre mudou de residência, e os barões de Santa Bárbara nunca mais tiveram notícia dela.


II


Passaram-se muitos anos, que correram prósperos para o barão, grande plantador de café; mas a lei de 13 de Maio surpreendeu-o, como a tantos outros agricultores imprevidentes, e a sua fortuna sofreu grandes revezes.


Depois de proclamada a República, ele atirou-se às especulações da Bolsa; ficou milionário durante a necrose do Encilhamento, e encontrou os seus milhões representados em ações de bancos e companhia que não valiam mais nada, e cuja liquidação foi a ruína completa. Nada, absolutamente nada lhe deixaram!...


Nesse doloroso transe, o infeliz titular não ouviu da esposa uma única pólvora de consolação ou de esperança que o animasse; pelo contrário: a baronesa desfazia-se em exprobrações e invectivas, e isto concorreu, naturalmente, para desesperá-lo.


O mísero tinha resolvido suicidar-se, quando uma congestão pulmonar o livrou de cometer esse pecado.


***


Morto o barão, a baronesa, sexagenária e enferma, ficou reduzida à miséria. Os amigos e parentes do marido tinham já se evaporado há muito tempo, e nenhum simpatizava com ela.


A desgraçada ia ser posta na rua por um senhorio implacável, e, para não morrer à fome, estava resolvida a pedir que a mandassem para um asilo, quando foi procurada por um belo rapaz de vinte e cinco anos, pouco mais ou menos, que lhe disse:


― Sra. Baronesa, conheço v.ex., estou ao corrente de todas as desgraças que lhe sucederam, venho pedir-lhe que aceite um lugar em nossa casa.


― Mas quem é o senhor?


― Sou aquela criança que, na véspera do Natal, em 1871, nas Laranjeira, dormia num caixão de batatas, e a quem v.ex. socorreu, mandando-lhe um berço, roupinhas e leite. Bem vê v.ex. que não faço mais do que pagar uma dívida de gratidão.


― Mas não me lembra... não fui eu que...


― O empregado que se encarregou de fazer com que essa delicada esmola chegasse ao seu destino, não foi tão discreto como lhe recomendaram. Ele disse a meu pai, confidencialmente, que a esmola era do falecido Sr. Barão, mas minha mãe acudiu logo: ― Não! a lembrança é da baronesa! Só as mulheres são capazes destes melindres do coração!


A baronesa não confirmou nem desmentiu.


― Há vinte e cinco anos, continuou o rapaz, o nome de v.ex. é repetido naquela casa como o de uma santa! Venha, sra. baronesa! Meu pai é morto, mas eu ganho o suficiente para sustentar duas mães...


Uma hora depois, a baronesa de Santa Bárbara estava muito bem alojada na casa dos seus protetores.


Arthur Azevedo.


 

- Natal brasileiro em prosa: 1854-1932. - Organização, notas e apresentação: Rafael Voigt Leandro.

- Edições Voz da Literatura, 2020.

- ISBN: 978-65-00-14098-9.

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