por Rosana Carvalho Dias Valtão*
Edital. Inscrição. Revisão de conteúdos. Prova. Redação. Para muitos jovens que estão completando a educação básica ou para aqueles que já a concluíram e almejam uma vaga em curso superior público (rompendo com formas e forças de resignação – principalmente se for o caso de filhos de trabalhadores, pobres, pretos, ou qualquer outra característica que os distingue da representação eurocêntrica e burguesa de ser), essas são palavras que reverberam, e constituem o contexto do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem.
O Enem foi criado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), em 1998, com a intenção de avaliar o desempenho do aluno no final da última etapa da educação básica – o ensino médio. Desde então, o exame é aplicado anualmente aos concludentes e/ou aos egressos desse nível de ensino com vistas a avaliar o processo educacional e viabilizar o acesso ao ensino superior. Essa avalição em larga escala representa, em tese, um avanço no que se refere às provas de ingresso às faculdades no Brasil, que eram comuns até o final do século XX, os temidos vestibulares – marcados ao longo da história por serem excludentes e segregacionistas.
Para subsidiar a elaboração do exame, foi criada a “Matriz de Referência” do Enem, prescrevendo o que é considerado imprescindível de ser avaliado/mensurado pela prova. Essa “Matriz” tomou como fundamento a lógica da “Pedagogia das Competências”. Em relação à língua portuguesa/leitura/literatura (eixo da área Linguagens, Códigos e Suas Tecnologias, ao lado de Artes, Língua Estrangeira Moderna, Educação Física e Informática), a Matriz possui nove competências e trinta habilidades[1]. Por causa disso, o trabalho docente acabou sofrendo uma espécie de inversão – em vez de a avaliação estar subordinada à totalidade do processo pedagógico, parece que o processo pedagógico foi reorientado para atender à avaliação em larga escala.
Sendo uma avaliação em larga escala, para a qual todos os olhos estão voltados, esse exame tem a oportunidade de contribuir com o desvelar da realidade, mostrando a necessidade de se romper com a visão sincrética do social e de se problematizar a perpetuação das desigualdades existentes na sociedade e a reprodução da representação unilateral do ser humano. Para isso, o Exame (e o trabalho pedagógico, consequentemente) deve/deveria primar pela avaliação dos conhecimentos clássicos[2] (científicos, filosóficos, artísticos produzidos historicamente pela humanidade), que abarcam a formação do homem total. Saviani (2019, p. 41) explica que “a natureza humana não é dada ao indivíduo humano com o seu nascimento”, em outras palavras, para se tornar humano o indivíduo precisa produzir em si a humanidade historicamente produzida pelo conjunto dos seres humanos. Duarte (2010, p. 102) especifica haver
[...] a existência de um processo histórico de construção da cultura humana entendida como a riqueza material e intelectual de todo o gênero humano. Essa riqueza humana ainda traz a marca de todas as profundas contradições da intensa luta de classes travada na história da sociedade capitalista [...].
Apropriando-se das riquezas materiais e imateriais o ser humano poderia se fazer um ser social completo (a cultura objetivada, apropriada pelos indivíduos, guia o processo de requalificação de seu psiquismo). É pela apropriação dos conhecimentos mais elaborados – em nosso caso particular de interesse e investigação, a arte literária, a obra literária, o texto de literatura, bem como os Estudos Literários (que englobam Teoria Literária, Crítica e Historiografia Literárias) – que a realidade concreta é acessada, a subjetividade é transformada, com vistas à omnilateralidade.
Nesse sentido, a defesa do lugar do texto literário na formação humana advém dos pressupostos de que: 1) a literatura é uma necessidade humana, 2) por meio da obra literária o ser humano pode refletir sobre si, sua relação com o mundo e com o outro, e 3) o texto literário humaniza, conforme Candido (2004, 2012). Ao defender a literatura como uma necessidade humana, Candido (2012) explica que é por meio da ficção que o homem desenvolve sua subjetividade, com a qual ele se humaniza, desenvolvendo-se como tal a partir do momento que tem acesso e se apropria (passa a fazer dele) dos conteúdos culturais objetivados em produções socio-historicamente relevantes. O autor deixa claro que, com a leitura (apropriação) da obra literária, o leitor requalifica a relação entre realidade, sentimento e pensamento, o que ampliará o campo de significados, ensejará na produção de novos sentidos e auxiliará a (trans)formação dos planos da vida tanto individual quanto coletiva.
Para Candido (2012, p. 82), a obra literária se dá “como síntese e projeção da experiência humana”. Dessa forma, a literatura é um bem incompressível para o homem (CANDIDO, 2004), pois é uma necessidade universal. A literatura permite que o indivíduo veja a realidade e pense sobre ela; isso quer dizer que a obra literária permite o homem pensar e refletir, mas ela não corrompe nem edifica; ela traz “livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (CANDIDO, 2004, p. 176).
A apropriação das produções literárias é uma maneira de buscar refazer o homem, de romper com seu caráter de mercadoria, de dar ao indivíduo “a chance de cultivar seus traços subjetivos mais singulares em contato com a riqueza humana historicamente produzida”, como explicou Della Fonte (2020, p. 115), permitindo que cada um, a seu modo, tenha a oportunidade de desenvolver sua individualidade, sua personalidade. Duarte (2016, p. 56) acrescenta que “[...] a atividade humana objetivada na cultura integra-se ao ser do indivíduo, transforma-se em órgãos da sua individualidade, humaniza a subjetividade individual desde o nível dos cinco sentidos até o das formas mais ricas e complexas que assume o psiquismo humano”.
Dito isso, entendemos que a literatura presente nas 29 provas aplicadas ao longo de mais de duas décadas do Enem poderia constituir uma ocasião oportuna para o acesso aos bens culturais mais fundamentais, conhecimentos e produções literárias clássicas. Por meio do exame, o participante terá (teria!) a oportunidade de pensar sobre si, sobre o outro e sobre sua realidade. Entretanto, pesquisas como Silva (2013) e Luft (2014) demonstram um processo de desvalorização da literatura a partir de documentos oficiais e das questões do Enem, uma excessiva primazia da leitura funcional do texto, uma perda de espaço da literatura e do texto literário no exame, o que se reflete em um processo de depreciação da literatura como disciplina escolar, e de caracterização do Enem como mera testagem – com um fim em si mesmo –, resultando apenas em responsabilização, escolha escolar, pagamento por mérito e exigência de desempenho – bem uma lógica de mercado –, o que consequentemente desconsidera a substância do aprendizado, ou questões que engendram a materialidade do trabalho educativo, como explicou Ravitch (2011).
Resumindo, ao buscar por competências e habilidades, por meio de textos fragmentados, os ideais de formação de sujeito são negligenciados ou colocados em segundo plano. Ou seja, há o esvaziamento do literário, a reorientação do projeto de formação humana e, consequentemente, a imposição de práticas docentes de preparação para provas, com vistas a corresponder às exigências da matriz de referências. E isso se torna uma maneira de “[...] impor obstáculos à formação de consciências críticas, que apreendam os fenômenos físicos e sociais com radicalidade” ou seja, esse movimento “é premissa para manutenção da ordem instituída” (GALVÃO, LAVOURA, MARTINS, 2019, p. 3).
Quando defendemos o acesso ao texto literário para a formação humana integral, omnilateral, referendamos o acesso aos conteúdos clássicos literários que irão garantir que o leitor se aproprie do texto lido e que, por meio da leitura, ele possa refletir e transformar sua realidade. E isso pode se legitimar por meio das obras literárias e conhecimentos que constituem as questões das provas do Enem, e consequentemente, sua relação intrínseca com a literatura em sala de aula. Conquanto, é imprescindível considerarmos que o objetivo da educação não pode ser produzir apenas bons resultados em avaliações, mas educar os estudantes para que se tornem pessoas responsáveis com mentes bem desenvolvidas e um bom caráter, o que quer dizer que a educação precisa formar sujeitos sócio-históricos participativos, com consciência sobre a sociedade que têm e sobre a sociedade que precisa ser produzida a fim de que todos e cada um tenham uma vida digna. Então é preciso pensar na educação e em seu complexo constitutivo (políticas públicas, teoria pedagógica, formação docente, ensino-aprendizagem, currículo, avaliação, profissionalização, infraestrutura material, público, principalmente) com vistas à formação humana emancipatória, que oportunize ao sujeito o desenvolvimento pleno – sensibilidade, percepção, consciência – que vise a um sujeito integral, em um contexto contraditório, historicamente produzido e determinado.
Rosana é licenciada e mestra em Letras e doutoranda pela Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. É professora efetiva no Instituto Federal do Espírito Santo (campus Alegre). Integra, desde 2012, o grupo de pesquisa Literatura e Educação.
Referências
Brasil. Ministério da Educação. Documento Básico sobre Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). BRASIL, 2002. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/matriz-de-referencia>. Acesso em: 27 set. 2020.
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio (1988). Vários Escritos. 4.ed. Duas cidades/Ouro Azul: São Paulo/ Rio de Janeiro, 2004, p. 169-191.
CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Remate de Males, p. 81-91, 3 dez. 2012. Disponível em: <www.revistas.rel.unicamp.br>. Acesso em: 15 jan 2018.
DELLA FONTE, Sandra Soares. Formação omnilateral e a dimensão estética em Marx. Campinas-SP: Autores Associados, 2020.
DUARTE, Newton. Por uma educação que supere a flasa escolha entre etnocentrismo e relativismo cultural. In: DUARTE, Newton; DELLA FONTE, Sandra Soares. Arte, conhecimento e paixão na formação humana: sete ensaios de pedagogia histórico-crítica. Campinas-SP: Autores Associados, 2010, p. 101-120.
GALVÃO, Ana Carolina; LAVOURA, Tiago Nicola; MARTINS, Lígia Márcia. Fundamentos da didática histórico-crítica. 1. ed. Campinas/SP: Autores Associados, 2019.
LUFT, Gabriela Fernanda Ce. Retrato de uma disciplina ameaçada: a literatura nos documentos oficiais e no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Tese de doutorado. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, Porto Alegre, 2014.
MARSILA, Ana Carolina Galvão; DELLA FONTE, Sandra Soares. A educação escolar e os clássicos literários: considerações a partir da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural. Revista Brasileira de Alfabetização, v.1, n.4, p. 19-34, jul-dez, 2016. Disponível em: <https://revistaabalf.com.br/index.html/index.php/rabalf/article/view/142>. Acesso em: 28 dez. 2020.
Notas
[1] De acordo com a publicação do Inep (BRASIL, 2002, p. 11), “competências são as modalidades estruturais da inteligência, ou melhor, ações e operações que utilizamos para estabelecer relações com e entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer”. Enquanto “As habilidades decorrem das competências adquiridas e referem-se ao plano imediato do “saber fazer”. Por meio das ações e operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-se, possibilitando nova reorganização das competências.”
[2]Saviani (2019, p. 41) explica que “O clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe, necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é aquilo que se firmou como fundamental, como essencial.” A noção que tomamos se relaciona com a defendida pela Pedagogia Histórico-Crítica: Marsiglia e Della Fonte (2016, p. 24) explicam que “a obra clássica supera sua temporalidade e seu espaço (sem deixar de trazer junto suas marcas históricas e locais) e carrega junto a si as leituras realizadas por cada geração de leitores [...] que passou a ter lugar de impacto na vida de uma sociedade ou de uma geração inteira, coloca em diálogo o nosso tempo (presente) e o tempo passado (tempo de criação da obra clássica), impactando os sujeitos, a pessoa e as gerações”. Galvão, Lavoura e Martins (2019, p. 107) complementam “Se a obra contém historicidade, mas supera sua situação temporal e se manifesta em uma estrutura objetiva-subjetiva que integra o singular ao universal, a ela se atribui um valor supratemporal, constituindo-se como uma obra clássica”.
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