Prezada leitora, prezado leitor,
Perdão pela forma epistolar deste escrito, tão em desuso em nosso tempo, como em desuso está a palavra melancolia.
Precisava desse vocativo, para um diálogo mais íntimo e franco a respeito da poesia.
A leitura de um poema - a imprescindível leitura de um poema - é o que propomos aqui.
Antes de prosseguir, um combinado: leia os versos reproduzidos a seguir sem se preocupar com a autoria do poema. Apenas leia o poema, o poema. (Resista à tentação de pular o poema e descobrir qualquer informação sobre a autoria. Um poema é muito mais que seu autor.)
O poema:
Remar com palavras simples
Usar os desvios dos rios
para onde tudo flui vermelho
fogo desejado
e remar com palavras simples
contrair os dentes até que jorre
sangue no céu da boca
água translúcida que transborda
verniz de tom indecifrável
usar os desvios dos rios
por caminhos nunca navegados
e remar com palavras simples
onde chegar não saberei
o ilimitável me conduz
nessa terra vasta de luz pouca
vou remar com palavras simples
com sangue no céu da boca.
[fim do poema]
Não, não, minha pretensão não é a de fazer suspense sobre o autor desses versos. Apenas propus um exercício meditativo de leitura de poesia. Tanto é que, para jogar água na fervura, passo ao nome do poeta: Carlos Cardoso.
Em que livro está o poema? Já ouço daqui a pergunta. Prontamente respondo: em Melancolia, lançado em 2019 (Ed. Record), mesmo ano em que recebeu o Prêmio APCA.
Uma palavra em desuso como título de um livro de poesia? “Só pode ser coisa de poeta com afã romântico, ou hamletiano...”, sugeriu um amigo com quem compartilhei essa leitura em um grupo de WhatsApp da {voz da literatura}, com muitos leitores sérios e entusiastas do projeto editorial da revista. (Costumo dizer que esse grupo é o conselho editorial informal da revista, de onde sacamos ideias para as pautas.)
De volta ao que interessa, a melancolia era a chamada “bile negra” dos antigos gregos, um estado “pseudodoentio” propício para a criação literária e filosófica. Retirei parcialmente essa informação do médico e escritor Moacyr Scliar.
Corri à minha estante e estabeleci novo contato com Freud. Para ele, a melancolia significa uma “psiconeurose narcísica”. “É o que nos pertence/em nosso âmago narciso”, confessa o canto poético de outros versos de Carlos Cardoso no poema “O pato de pedra”.
O poeta Cardoso espreita o eu-lírico forjado, que por sua vez olha de esguelha para cada um de nós outros, leitores comprometidos com a leitura meditativa do poema.
Sigmund, o psiquiatra vienense, relaciona ainda a melancolia ao luto, à perda. Concorde ou não - é da liberdade de cada um -, Freud é um pensador necessário, provocador, melancólico em boa medida.
Nos versos de Carlos, há um rastro de perdas na dicção do eu-poético, como se fosse um ser humano como eu, como você, leitora, leitor, diante da vida. Sem medo de expressar os medos...
Há uma unidade na melancolia dos 39 poemas. Seria a melancolia a metáfora da literatura, ou o inverso? Há dor, pedras (muitas, de todos os tipos, pedra-verso, pedreiras, que perduram ou que são perd_as)... Há neve, carnaval, violência, noite, noite bem escura, vírus, desilusão... Em toda parte se imiscui e transborda a melancolia na Melancolia de Carlos Cardoso, como a “bile negra”, como um rio “cão sem plumas”.
Sim, é João Cabral no intertexto, mas não nesse que fluiu. Mais exato, mais concreto, na tentativa de dizer que o poeta-engenheiro voltou junto com a melancolia. Parece que João Cabral soprou no ouvido de Carlos Cardoso:
“O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.”
Leitora amiga, leitor amigo, chegaram até este ponto? Fiquem comigo só mais um pouco. Juro que não vou tomar mais seu tempo. Para a poesia, todo o tempo não basta...
Fico a cismar se a melancolia pode ser não só um estado de espírito ou um estado lírico, mas um estado nacional. Escrevo de Brasília - melhor: de Taguatinga, onde temos a Praça do Relógio. Brasília, para mim, é uma das ilhas da melancolia nacional deste ano de 2020.
Sem fecho para este texto epistolar, para deixar o diálogo em aberto, como um poema que se contrai em uma forma, abre-se em uma leitura e é o mundo.
Rafael Voigt
O editor
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