O polonês Stanislaw Lem (1921-2006) é um dos maiores nomes da ficção científica. "Solaris" (1961) é um dos seus romances mais cultuados pelo mundo. "Nova cosmogonia e outros ensaios", lançado este ano pela editora Perspectiva, apresenta ao público o Lem ensaísta, que complementa aquele da ficção científica.
por Rafael Voigt
Entre meus amigos, Alfa é aquela mais afeita à ficção científica. Dela, em meu último aniversário, recebi um volume de Arthur C. Clarke. Penso que Alfa quer, a todo custo, me converter a sua tribo “cientificista” .
Com o recente lançamento de Nova cosmogonia e outros ensaios, de Stanisław Lem, pela editora Perspectiva, a nossa Alfa ficou em estado de êxtase.
Sua iniciação na seara da ficção científica se deu com a leitura de Solaris (1961). Ficou tão apaixonada pelo livro de Lem que, em sua biblioteca, ostenta uma vasta coleção de edições desse clássico de Stanisław Lem nas mais diferentes línguas. Só para constar: foi Alfa quem - graças a Deus - me obrigou a ler Solaris. Posso dizer que o livro me fez um admirador de Lem, porém sem toda a paixão de Alfa. No meu caso, minha admiração se dava mais pelo fato de Lem, por meio de sua ficção, ter conseguido driblar a feroz censura do regime soviético; enquanto Alfa vibrava com a possibilidade de existir um planeta como Solaris nesse oceano estelar sem fim chamado universo.
As edições brasileiras do best seller de Lem estão todas na estante da minha amiga. Em 2017, diante da nova tradução de Eneida Favre, publicada pela editora Aleph, Alfa foi a primeira a reservar um exemplar na pré-venda. Não podia deixar de prestigiar a primeira tradução direta de Solaris do polonês para o português.
Importa mencionar que minha amiga guarda, em um hd externo, como forma de backup, em um pequeno cofre, as adaptações de Solaris para o cinema. Algumas gravações, inclusive, com imagens inéditas nunca exibidas em nenhuma sala de cinema. Segundo ela, em uma das cenas, aparece Lem, assim como aparece Stan Lee nos filmes da Marvel.
A paixão de Alfa por Stanisław Lem chegou a ponto de ela tentar se encontrar com o autor na Polônia. Reuniu recursos, mas, no meio do projeto, o autor morreu em março de 2006. Se naquela época fosse mais comum o crowdfunding e as redes sociais estivessem mais robustas, talvez ela tivesse conseguido arrecadar mais rapidamente o dinheiro necessário para a realização de seu sonho.
Abalada pela morte de Lem, restou a Alfa conhecer Cracóvia e vivenciar parte da cidade onde Lem morou boa parte de sua vida.
Dia desses, em visita a Alfa, fui convidado para uma experiência "extrassensorial", como ela se referiu em mensagem que me mandou em um novo aplicativo de troca de mensagens que eu e ela instalamos em nossos smartphones. (Alfa quem criou essse programa, que ainda não está disponível para o público. O thinker - nome provisório - capta o pensamento do usuário e o transforma em texto. Alfa me disse que tentará vender o programa para o google, a microsoft ou a apple.)
— Que experiência é essa, Alfa? - perguntei curioso.
— Você sabe da minha admiração por Lem. Decidi estudar a transcomunicação instrumental, para tentar um contato com ele, de onde ele estiver.
— Quê? Não entendi...
— A transcomunicação instrumental começou com Thomas Edison, quando o conhecido inventor revelou, em 1920, que pretendia criar uma máquina para fazer contato com os mortos. - contou-me exultante.
— Interessante... - disse descrente.
— Até a escritora Hilda Hilst, nos anos 1970, realizou experiências de transcomunicação instrumental, obtendo resultados proveitosos. Ela foi inspirada pelo livro de Friedrich Jürgenson. Você aceitaria participar do experimento?
Sem esperar minha resposta, trancou a porta do quarto de seu escritório.
Diante de uma televisão de tubo, ligada a um fio de telefone espiralado, conectado a uma tomada diferente das tomadas comuns, Alfa segurou com força um controle, que parecia ser um antigo controle de videocassete da minha infância. Alfa juntou toda aquela geringonça para quê? Fiquei pensando comigo. Ela ligou o aparelho, que a princípio chiou e formigou a tela:
— Agora muito silêncio... - disse de forma incisiva e muito séria.
— Mas,...
— Silêncio! — repetiu de modo mais sério ainda.
— ... — silenciei para não contrariá-la.
Obediente, mantive-me estático por mais de três minutos.
Repentinamente, ela desligou tudo. Tomei um susto. Não espera essa reação dela.
— Acho que desliguei um dos cabos indevidamente. Espere um pouco. - falou quase aos gritos, como se eu tivesse longe.
Mexeu em vários fios que, a princípio, não vi quando adentrei aquilo que passei a chamar de câmara científica. Olhava para Alfa e a impressão que tinha é que ela parecia mais desembolar os fios do que efetivamente consertar alguma coisa.
— Vou ligar novamente! - sorriu de alegria e alívio, por ter reparado a aparente falha.
O aparelho voltou a chiar e a formigar a imagem do tubo. De repente, um azul ou roxo, como se alguém tivesse aproximado um ímã, tornou a tela com novos efeitos.
— Está quase...
Alfa olhou para mim. Não esbocei resposta, porque entendi que, naquele momento, só ela poderia falar alguma coisa.
Eu me agarrava ao livro que havia levado, o Nova cosmogonia e outros ensaios. De início, em minha visita, Alfa havia mencionado que seria proveitoso discutir comigo trechos dessa obra de Lem. De repente, ela me assustou, com seu novo sobressalto:
— Tá vendo? Consegue ver? Consegue?...É ele. Sim, é ele!
— ...
— Não me olhe assim! É ele: Stanisław Lem! Não reconhece?! Ele atendeu ao meu chamado e veio nos visitar!
— ...
— Por mais que eu não saiba polonês, aparelhos como esse de transcomunicação instrumental permitem que falemos qualquer língua e há uma tradução simultânea que possibilita certa fluidez na comunicação entre pessoas de diferentes nacionalidades.
Alfa desandou a conversar com a alma de Lem. Perguntou onde ele se encontrava, em qual dimensão ou planeta. Fiquei sem compreender se eu não estava conseguindo ver, ou minha amiga estava vendo coisa de mais. Também não ouvia a voz de Lem, apenas os chiados da televisão.
Decidi, mesmo assim, participar do que parecia ser um sonho para Alfa. Pedi permissão para fazer perguntas a Stanisław Lem. Ela concordou. E ressaltou que depois poderia transcrever as respostas, pois o sistema gerava relatório completo das conversas.
Concordei. Abri o livro aleatoriamente e comecei a fazer perguntas, a partir de anotações que havia deixado em Nova cosmogonia.
Depois de alguns dias, Alfa me enviou as respostas. Foi mais ou menos isso que conversei com Lem, segundo ela:
EU: Desculpe, Lem, não vim preparado para esse encontro... No seu novo livro, lançado no Brasil há poucos meses (esse que tenho aqui em minhas mãos), o senhor traça diferenças entre a evolução natural e a evolução tecnológica. Poderia explicar um pouco para nós?
LEM: A primeira diferença entre nossas duas evoluções é genética e refere-se à questão das forças causadoras. A "causadora" da bioevolução é a Natureza, e a da evolução tecnológica, o homem. O problema de surgimento da vida ocupa em nossas considerações um lugar importante, porque a sua resolução será algo mais do que a apuração das causa de um determinado fato histórico do passado remoto da Terra. Não se trata desse fato em si, mas de suas consequências para o desenvolvimento da tecnologia que continuam bem atuais. Esse desenvolvimento levou à situação em que a continuação do percurso não será possível se um conhecimento preciso sobre fenômenos extremamente complexos - tão complexos como a vida. E não trata de "imitarmos" a célula viva. Não imitamos a mecânica do voo das aves, porém, voamos. O que desejamos não é imitar, mas entender. E justamente as tentativas "construtoras" de entendimento da biogênese, encontram dificuldades enormes.
EU: Obrigado por esses esclarecimentos... Tenho outra questão. Após ler o ensaio "Provocação", o que mais se pode dizer sobre a história do genocídio perpetrado pelos nazistas? O senhor consultou documentos inéditos para estudar o fenômeno?
LEM: Como mostram os documentos que nos chegaram, os alemães examinavam também a possibilidade de uso de outros métodos, como por exemplo, a esterilização pela exposição de raio-x, mas acabaram por decidir pela carnificina. Para a história da Alemanha, declara Aspernicus, para a ponderação da sua culpa, para a política mundial no tempo de pós-guerra, uma ou outra variante do judeocídio não tinha qualquer importância, porque, mesmo sem isso, os crimes de guerra do Terceiro Reich qualificavam-se à pena capital. E não é menor criminoso quem aniquila um povo com a esterilização forçada ou isolamento dos sexos do que quem o assassina. Porém, para a psicossociologia do crime, para a análise da doutrina hitleriana, para a teoria do homem, a diferença é crucial. Himmler justificava o judeocídio perante os seus colaboradores afirmando a necessidade de extermínio dos judeus com a intenção de que nunca mais pudessem ameaçar o Estado alemão.
EU: Mudando um pouco de assunto, como se formou seu interesse pela futurologia? Por que o senhor pode ser considerado uma espécie de Robison Crusoé da futurologia?
LEM: Tornei-me sem quer, e até sem saber, o chamado "pesquisador do futuro". Hoje, olhando para trás, percebo mais ou menos como isso ocorreu. Antes de tudo, quando comecei a em ocupar "como o que ainda seria possível", nada sabia de qualquer "futurologia". Não conhecia esse termo e, portanto, não sabia que ele fora cunhado pro Ossip Flechtheim, em 1943. Para certificar-me sobre a data, fui ao léxicon de Joseph Meyer, o Meyers Konverstions-Lexikon, e soube que Flechtheim dividia sua futurologia em três áreas: prognóstico, teoria do planejamento e filosofia do futuro...(...) - trecho incompreensível, por problemas na gravação (anotou Alfa) - No livro dedicado à minha infância (Alto Castelo) descrevi, por exemplo, a minha "atividade inventiva" aos treze anos. Preenchia cadernos com desenhos de máquinas rastejantes, voadoras e até as facilitavam o consumo de milho cozido, pois me interessava por tudo. Naquela época, entregava-me também a outros tipos de ocupação, ainda mais fantásticos. Assim, durante as aulas enfadonhas me dedicava a fazer, com papel recortado dos cadernos escolares, carteiras de identidade de imperadores e reis, documentos de outorga de diversos tesouros, joias e passes de entrada para Castelos Muito Secretos, que cheguei a produzir de montão. (...) - gravação falhou novamente - Fugia, então, em minha imaginação para outros tempos e outros mundos e, embora soubesse que "não era verdade", guardava bem meus segredos. Porém, não há como considerar as esquisitices infantis como início da "atividade futurológica". Todavia, quando, depois da guerra, achei-me com meus pais em Cracóvia, aquilo que começara a escrever enquanto estudava medicina, não era uma ficção científica apenas medíocre.
Confrontei as respostas de Lem com suas explanações em Nova Cosmogonia. Eis minha surpresa! Elas são exatamente iguais às do livro. Nada comentei com minha amiga, que estava transbordante de alegria com seu experimento.
Ontem, Alfa me convidou para mais uma sessão de transcomunicação instrumental. O autor convidado? Karel Čapek. Será que vou? Será que ele vai?
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