por Eudma Poliana Medeiros Elisbon*
No momento em que se completam 18 anos da promulgação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do Ensino Fundamental até o Ensino Médio, é importante avaliar, ao menos em certos aspectos, seus efeitos, sobretudo, diante de um cenário cada vez mais explícito de eventos notadamente racistas amplamente divulgados pela mídia nacional.
Se por um lado estamos diante de um marco no que se refere à implementação de política pública, resultado da luta dos movimentos negros, por outro o caminho demonstra-se ainda longo até que alunas e alunos da educação básica reconheçam e valorizem a cultura ancestral negra.
Nesse sentido, e a partir dos dados produzidos durante pesquisa de doutoramento intitulada “A mulher e o feminino em livros didáticos contemporâneos de literatura de Ensino Médio”, defendida em 2018, reconhecemos o papel que o livro didático pode desempenhar nesse processo de apropriação e enquanto elemento de divulgação de concepções culturais e visões de mundo.
Apesar de a pesquisa concentrar-se nas formas como os estereótipos femininos e de mulher disseminados socialmente, pela historiografia e pela crítica literária, são representados e apropriados pelo livro didático de Literatura do Ensino Médio, as implicações étnico-raciais emergiram no instante em que realizamos levantamento sobre a representatividade de textos literários de autoras negras presentes nas duas coleções didáticas que constituíram o corpus principal da pesquisa - “Português: linguagens”, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar de Magalhães, da editora Saraiva; e “Português: linguagens em conexão”, de Graça Sette, Márcia Travalha e Rozário Starling de Barros, da editora Leya.
A constituição da autoria dessas coleções didáticas acabou se tornando um tema fundamental para a pesquisa por entendermos que os autores cumprem um papel fundamental nas escolhas ideológicas e, portanto, na imagem de mulher que se quer perpetuar ou não.
Conceição Evaristo (2009), escritora cujas obras abordam a temática da discriminação de raça/etnia, de gênero e de classe, especificamente no artigo intitulado ― “Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade” – apresenta algumas reflexões relativas ao ato de fazer, pensar e veicular o texto literário negro, além de reconhecer a importância do livro didático para a divulgação, a representação e a legitimação de nomes importantes da literatura afro-brasileira. Para ela,
A literatura brasileira é repleta de escritores afro-brasileiros que, no entanto, por vários motivos, permanecem desconhecidos, inclusive nos compêndios escolares. Muitos pesquisadores e críticos literários negam ou ignoram a existência de uma literatura afro-brasileira (EVARISTO, 2009, p. 27, grifo meu).
Não é possível consentir que temas importantes para as mulheres e para as mulheres negras continuem surgindo apenas pela voz masculina e branca. É necessário que tenhamos voz. E ter voz significa poder ter acesso a representações femininas negras construídas e apresentadas aos alunos, no livro didático, por exemplo, por meio da voz da mulher negra na literatura, sem presumirmos, entretanto, que uma maior representatividade, traduza-se, automaticamente, numa representação que questione, que aborde a masculinidade hegemônica.
Em outras palavras, consideramos não haver obrigatoriedade da conexão entre ser mulher e escrever como mulher - ser mulher não é garantia, e nem deve ser encarado como algo impositivo de um posicionamento crítico ou questionador dessa masculinidade hegemônica.
Portanto, é preciso não criar uma expectativa de se haver uma relação direta entre maior representatividade e uma autoria feminina que não se codifique nos moldes da literatura masculina já consolidada, que contrarie temas universais, que questione, construa ou desconstrua representações femininas ou mesmo que se posicione diante de seu próprio cotidiano.
O mesmo podemos dizer sobre a literatura feminina negra ou afrodescendente. Duarte (2002, p. 54) defende, por exemplo, que a análise da literatura negra ou afrodescendente “não pode se reduzir a simplesmente verificar a cor da pele do escritor, mas é preciso investigar, nesses textos, as marcas discursivas que indicam (ou não) o estabelecimento de elos com sua história e cultura”. Mas não estamos dizendo, que fique claro, que não é preciso reivindicar uma maior representatividade da literatura negra nos livros didáticos, por exemplo.
De uma forma ou de outra, o cenário com o qual são confrontados, cotidianamente, alunos e alunas em contato com esses livros didáticos é de um evidente processo de invisibilização da autoria feminina. E quando buscamos identificar quantas das escritoras que eventualmente comparecem nos livros didáticos são negras, esse processo se intensifica: na coleção “Português: linguagens em conexão”, deparamo-nos com textos de apenas quatro autoras negras - Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Miriam Alves e Sônia Fátima da Conceição; ao passo que “Português: linguagens” não contempla nenhum texto de nenhuma autora negra.
Esse mesmo processo de exclusão representacional se repete nas imagens utilizadas nas coleções didáticas. Examinamos, por exemplo, as fotos de mulheres que aparecem nas duas coleções. Em “Português: linguagens”, constatamos 88 fotos das quais apenas 15 (equivalente a 17%) retratam mulheres negras. Sendo que, em muitos casos, a imagem da mulher negra aparece vinculada a textos, literários ou não, que tratam apenas de questões étnico-raciais. Como na reprodução da história de Chica da Silva ou para ilustrar os raros textos que tratam do universo negro, como no poema “Navio negreiro”, de Castro Alves, ou no poema “Carta de um contratado”, do escritor angolano, Antônio Jacinto.
Nesta coleção, raramente, as mulheres negras são representadas em situações cotidianas (no trabalho, em casa, em atividades intelectuais, recreativas, etc.) ou para ilustrar textos e discussões que abordem assuntos outros que não a literatura afro-brasileira e as relações étnico-raciais.
Já em “Linguagens em conexão”, identificamos apenas 17 fotografias entre centenas de imagens, das quais 4 (aproximadamente, 23%) registram mulheres negras. Ainda que em número proporcionalmente maior, as mulheres negras também não são satisfatoriamente contempladas por essa coleção. A diferença, embora mínima, mas fundamental, em relação à coletânea assinada por Cereja e Magalhães, revela-se no fato dessas imagens não ilustrarem apenas textos ou discussões sobre questões étnico-raciais. São privilegiadas imagens de mulheres negras de sucesso em diferentes campos de atuação – como a ginasta Daiane dos Santos e a escritora Conceição Evaristo –, de meninas negras em situação corriqueira de leitura ou da modelo que inspirou a artista Tarsila do Amaral na composição de uma de suas obras.
Nesse sentido, as vozes femininas identificadas em “Linguagens em conexão”, ainda que de maneira bastante discreta, abordam questões africanas e afro-brasileiras distintas dos estereótipos; tratam da negritude, de questões coloniais e pós-coloniais como temas importantes a serem enfrentados; além de destacarem o engajamento político da literatura em países de língua portuguesa no continente africano.
Também sobre isso, Evaristo (2009) sustenta que mesmo diante da diversidade do sistema literário brasileiro, o não reconhecimento da escrita afro-brasileira, corroborado pela análise sintética que apresentamos do livro didático, manifesta tanto a relevância da língua e da linguagem como um espaço não-negociável da cultura dominante sobre a cultura negra, quanto o descaso da história oficial com as contribuições de negras e negros. Especificamente sobre a resistência do discurso oficial em incorporar a história e a voz dos africanos e seus descendentes – uma realidade ainda identificada nos livros didáticos –, ela escreve:
[...] [Constata-se] a ausência de textos nos livros didáticos sobre os núcleos quilombolas de resistência ao escravismo que se ergueram em todo território nacional. Sabe-se também da luta discursiva que se tem travado nos campos da história e da literatura amparada pelas vozes do Movimento Negro, para colocar Zumbi dos Palmares, João Cândido, Luiza Mahim e outros e outras heroínas no Panteão de heróis nacionais (EVARISTO, 2009, p. 24).
É fundamental para o povo negro afirmar sua herança cultural e pertencimento étnico-racial e de gênero pela escrita – o que poderia ser possibilitado também pela atuação do livro didático ou mesmo pela efetiva implementação da Lei 10.639/03. E quando dizemos “também” é porque não reconhecemos um ou outro como os únicos divulgadores e responsáveis pelas apropriações dessas formas de representações sociais.
Por conseguinte, precisamos lembrar que o cenário invisibilizador, excludente e discriminatório não é uma criação do livro didático. Essa sub-representação é uma prática social. O livro está inserido num cenário sociocultural que o antecede e o alimenta. Sobretudo, quando esse cenário mostra-se ainda mais desafiador a professores confrontados à necessidade de escolher livros didáticos diante das incertezas de um “Novo Ensino Médio”, de uma pandemia e, acima de tudo, de uma política de governo que ignora o pluralismo de ideias e está “calcada em um ideário ultraconservador e neoliberal” (RAMALHETE, 2020, p. 7). Então, não se trata de uma mera culpabilização desse objeto cultural ou mesmo de certa coleção ou grupo de autores.
Não obstante a essa conjuntura, alunas e alunos da educação básica brasileira são confrontados cotidianamente com forças discursivas de diferentes naturezas, em diferentes contextos, muitas vezes distintos das representações construídas pelo livro didático e a despeito, muitas vezes, do esvaziamento dessas discussões na própria escola. Eles debatem e questionam representações estereotipadas e destacam o papel da Literatura na conformação, ou não, de modelos identitários atribuídos historicamente às mulheres e às mulheres negras.
Tratando-se do livro didático, ou mais especificamente do próprio texto literário, é importante destacar que se veiculam discursos hegemônicos, discriminações, estereótipos e relações desiguais, ou, simplesmente, invisibilizam vozes subalternizadas, os alunos – ainda que não disponham de todos os instrumentos analíticos necessários para desvelarem interditos ou para romperem certas representações sociais preeminentes – não estão passíveis a essas influências, porque mobilizam outras práticas discursivas às quais têm contato para além dos muros escolares. Assim,
[...] os alunos possuem uma visão crítica em relação às práticas escolares, bem como, ao próprio livro didático. Eles conseguem estabelecer relações entre os textos literários e a realidade. Julgam em que medida os textos, ou as personagens, negam ou reforçam certos estereótipos ligados aos conceitos de feminilidade e de masculinidade, ou ainda, quando contrariam ou acentuam o perfil idealizado de mulher. [...] Colocam-se criticamente diante dos papéis desempenhados pela família, pela religião e pela escola na construção de relações mais equânimes [...] conseguem defender seus pontos de vista com argumentos relativamente consistentes diante de sua comunidade interpretativa e respeitando suas diferentes subjetividades. (ELISBON, 2018, p. 320)
Isso, todavia, não isenta o livro didático do seu compromisso social, da necessidade de democratizar os espaços e os discursos não contemplados pela literatura canônica, notadamente, as vozes das escritoras negras brasileiras. É fundamental que ele dê voz “a um modo próprio de produzir e de conceber um texto literário, com todas as suas implicações estéticas e ideológicas” (EVARISTO, 2009, p. 17) e possibilite a essas alunas e alunos a afirmação de sua herança cultural e pertencimento étnico-racial e de gênero pela escrita.
Eudma Poliana Medeiros Elisbon é licenciada, mestra e doutora em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo e professora da rede pública estadual na cidade de São Mateus, município da região norte do Espírito Santo. E-mail: eudmapolianamedeiros@gmail.com
Referências
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm Acesso em: 05 jul. 2021. CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
DUARTE, Eduardo de Assis. Notas sobre a literatura brasileira afrodescendente. In: SCARPELLI, Marli Fantini; DUARTE, Eduardo de Assis (Orgs). Poéticas da Diversidade. Belo Horizonte: UFMG/FALE: Pós-Lit. 2002, p. 47- 61.
ELISBON, Eudma Poliana Medeiros. A mulher e o feminino em livros didáticos contemporâneos de literatura de Ensino Médio. Tese de Doutorado. Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, 2018.
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Scripta, Belo Horizonte, v. 3, n. 25, p. 17-31, 2o sem.
RAMALHETE, Mariana Passos. A diretriz de educação literária na Política Nacional de Alfabetização: contrapontos. Revista Práxis Educativa, v. 15, n. 1, 2020.
SETTE, Maria das Graças Leão; TRAVALHA, Márcia Antônia; BARROS, Maria do Rozário Starling de. Português: linguagens em conexão. 1. ed. São Paulo: Leya, 2013.
Publicação mais que necessária e urgente. As colonialidades precisam ser combatidas nas escolas brasilerias.
Abraços,
Paulo Nunes